terça-feira, maio 31, 2005
‘Por onde tens andado, rapariga?’, perguntaram-lhe quando se aproximou da primeira torre.
‘O gajo arranjou trabalho lá em baixo e eu fui com ele. Pensei que ia ser bom.’ Lá em baixo é uma cidade do Algarve, bem longe do Porto, da mãe, da família, do Aleixo.
Apanhou um comboio pouco tempo depois de ter chegado ao Bairro com três sacos de plástico, uma mala velha e nenhum lugar para onde ir. Lá em baixo afinal não havia trabalho. Apenas uma promessa e uma esperança. Conseguiu sobreviver com biscates pontuais e horas extraordinárias em bares duvidosos. ‘Foi necessário. O gajo não me ajudou nada. Passado três semanas só aparecia em casa para me pedir dinheiro.’
Nunca deu notícias e fugiu de quem a procurou. Dizem que a mãe se preocupou. Viram-na no Bairro algumas vezes, parada dentro de um carro, na expectativa de a ver passar, de saber que ela esteve ali.Está muito magra, visivelmente doente e sem força para resistir. Conseguiu cravar o primeiro chuto de uma nova temporada. Sentou-se na berma do passeio a chorar. ‘Só quero que isto acabe depressa. Muito depressa. Quanto é que achas que é preciso para morrer em paz?’
domingo, maio 29, 2005
Casimiro.
Ou ‘Cuidado com as imitações, ó Casimiro!’
Nasceu para os lados da Cantareira há mais de sessenta anos. A pele ainda está queimada das muitas horas que passou ao sol, no meio da água, a arrastar as redes, a polir os cascos, a pintar a madeira, a carregar caixotes de sardinhas. ‘Fazia de tudo. Quando sobrava tempo escrevia versos para cantar à noite, aqui ao lado.’ Quando se reformou decidiu dedicar mais tempo ao fado. Agora é uma estrela. Da Rua do Ouro ao Campo Alegre toda a gente o trata pelo nome. Ao fim da tarde, costuma apanhar o barco para a Afurada, para cantar uns fados.
‘Aqui já não se canta. Vamos para a tasca do outro lado do rio.’, explica enquanto bebe mais um bagaço, dos que arranham a voz, sentado na esplanada do Centro Popular dos Trabalhadores da Freguesia de Lordelo do Ouro. ‘Grande voz, a dele. Só visto! E escreveu muitos versos. Muitos e bonitos. Mais do que muita gente que p’raí anda.’, informa-me um admirador.
Está sol no Bairro do Aleixo e arredores. Sente-se o cheiro de sardinhas assadas. Há festa no Bairro e ouve-se alguém a gritar ‘Ó Casimiro, canta-me um fado que eu pago-te um copo. Não és homem nem és nada!’
quarta-feira, maio 25, 2005
Brocas Gang II.
Quando o calor aperta, aperta para todos e ninguém quer ficar de fora.
O Augusto, o Migas e o próprio Brocas, estrearam um par de calças cada um, vestiram a melhor camisa que encontraram e prepararam-se para receber as primeiras visitas estrangeiras desta época.
Num primeiro momento observaram a clientela a fazer fila na Torre Um, depois os carros que passavam muito devagar com clientes indecisos. Foram beber umas cervejas para refrescar a garganta e aligeirar os pensamentos.
‘Está muita gente. Não vai ser fácil, hoje!’ O Augusto embrulhou um charro e tentaram planear o ataque. ‘A estranja é fácil gamar, mas mesmo assim não é bom aproveitarmo-nos de cromos indefesos.’ O Brocas estava com pouca vontade de acção e ainda por cima o jogo mais importante do campeonato estava quase a começar.
‘E que tal embrulhar mais um e ir chatear os mouros?’ A sugestão foi aceite por unanimidade. Tentaram chegar rapidamente às proximidades do Bessa. O Migas ficou encarregue de esgrimir o extintor oferecido pelo Vinagre, caso fosse necessário usá-lo como arma.
‘Parto a cabeça ao primeiro lampião que me aparecer à frente e se recusar a engolir esta merda!’ Começou a disparar o conteúdo do extintor para todos os carros que passavam, enquanto cantava.
terça-feira, maio 24, 2005
Vinagre II.
‘Hoje é só chapas novas, caralho!’ O Aleixo está agitado. Clientes de todo o país, cabeleiras loiras e sotaques estrangeiros.
Ao que parece a polícia está ocupada com actividades mais lucrativas e o terreno ficou livre para a primeira grande romaria de clientes deste Verão. Quase Verão. Não há mãos a medir. O Vinagre contratou um ajudante, por dois pacotes, para o acompanhar durante todo o dia.
‘E o que é que eu faço com isto?’, perguntou-lhe o ajudante que trazia um extintor na mão. ‘Gamei-o ali em cima!’ O Vinagre não prestou muita atenção ao facto. ‘Ouve lá! Eu trato da conversa com os gajos e convenço-os. Tu vais com eles à loja e dizes que é meu cliente. Do Binagre. Percebes?’, estava preocupado em explicar o método de trabalho a seguir. Olhava ansiosamente para todos os carros que paravam. ‘Isto hoje é só chapas novas. Foda-se! Temos que ser rápidos para ganhar algum.’
segunda-feira, maio 23, 2005
Dona Rosa.
Vive de uma pensão de quarenta e dois contos mensais, devidamente transformados em euros. Não tem familiares por perto. O único filho que teve parece ter-se esquecido dela há alguns anos. É viúva há doze anos e, desde então, vive sozinha. Quando lhe perguntam como vai o miúdo ela responde: ‘Um malandro. Esforcei-me para o criar e ele nunca mais quis saber de mim.’
Grande parte dos dias são passados com lamentos pela falta de sorte e pelo destino que lhe atribuiu uma pensão que ‘não chega para nada, muito menos para ser roubada’ No tempo que lhe sobra vê televisão e prepara duas refeições que serve em dois pratos pequenos, numa mesa velha. ‘Um é para o meu falecido, que deus o tenha, o outro é para mim. Como sempre pelos dois, não deixo estragar nada.’
Ao fim da tarde gosta de beber um copo de vinho tinto e dar duas de treta com a vizinha do lado quando ela está para isso. Custa-lhe muito descer as escadas e precisa de ter sempre um bom motivo para esse esforço extraordinário.
As únicas ocasiões em que mostra ainda ter energia é para insultar o outro vizinho de patamar ‘se eu fosse mais nova, eles viam aonde eu lhes punha os dentes.’
sábado, maio 21, 2005
As ficções e o Bairro do Aleixo.
A Comissão de Moradores, Traficantes e Outros Negociantes do Bairro do Aleixo reuniu-se de emergência para discutir e analisar as consequências das notícias que recentemente têm sido divulgadas a propósito do Bairro.
A sessão abriu com uma nota de louvor a todos os habitantes, sem excepções, por ‘finalmente o Bairro do Aleixo, o nosso tão querido Bairro do Aleixo, estar nas bocas do mundo. Todo o país ouve falar de nós ultimamente.’
As inúmeras notícias que têm aparecido nos jornais, nas rádios e nas televisões já fizeram aumentar as vendas em cerca de 60%, levando à abertura de várias filiais da Torre Um nos bairros vizinhos, para que seja possível atender todos os clientes.
Houve no entanto uma notícia de um jornal que causou muita indignação aos membros da Comissão. Nesta notícia referiam-se como verdadeiras, histórias inventadas, pessoas fictícias e factos falsos.
‘A ansiedade de busca da verdade, que não é em si mesma censurável, levou o jornal a publicar um rol de ficções quase tão grande como os delírios causados pelas nossas melhores substâncias’, explicou um dos coordenadores desta reunião.
Foram distribuídas cópias das cinco páginas da notícia, com fotografias de pessoas que nunca puseram os pés no Bairro do Aleixo.
‘Temos que fazer alguma coisa em relação a este abuso. Agora que toda a gente nos conhece e gosta de nós, lembram-se de inventar estas mentiras e esperam que a gente fique de braços cruzados. Não pode ser assim.’, declarou um elemento da comissão que ficou muito ofendido por uma das personagens mencionadas na reportagem ter um nome idêntico ao seu.
Segundo o jornal, um diário bastante lido na região, especialmente em cafés com finos bem tirados e sandes de presunto com sabor a plástico, um jornalista inseriu-se na nossa comunidade – ‘como se isso fosse possível!’, disse alguém – contactou com pessoas, fez perguntas e ouviu histórias. Ou seja, criaram uma obra de ficção cujo resultado são cinco páginas de literatura razoável, onde os autores mostram com criatividade, sentido de humor e imaginação um Bairro do Aleixo que não é o verdadeiro. ‘Um belo exercício, com muito valor... Ainda por cima estes tipos nunca cá estiveram’, concluiu o orador depois de explicar, em linhas gerais, o conteúdo da reportagem.
Não podemos esquecer que depois de alguns acontecimentos mais trágicos, que recentemente marcaram a imagem do Bairro, a imaginação das pessoas despertou e todo o país quer saber novidades sobre este pacato conjunto de cinco torres residenciais, onde se vive, se trabalha e se negoceia muito tranquilamente durante quase todo o ano. Assim, é compreensível o desejo de criar uma imagem fantástica, de inventar histórias e personagens que despertem a curiosidade dos leitores de jornais e de outros meios de comunicação rápida.
Por tudo isto a Comissão decidiu não fazer nada em relação a esta falsa notícia, nem mesmo denunciá-la publicamente. Pelo contrário, emitiu uma nota para as redacções agradecendo a todos os jornalistas, fotógrafos, operadores de câmara, produtores de conteúdos e outros intervenientes, a atenção recentemente dispensada ao Bairro do Aleixo e toda a energia e talento criativo que têm colocado neste assunto.
Em forma de advertência, pode-se ainda ler neste comunicado à imprensa ‘Apesar do nosso reconhecimento, é melhor terem muito cuidadinho com as histórias futuras, não vá a ficção ir longe de mais e perturbar a nossa rotina comercial.’
quarta-feira, maio 18, 2005
Francisco.
Ficou conhecido por trazer pessoas importantes ao Bairro do Aleixo. Um dia apareceu a conduzir um Mercedes de grande cilindrada. ‘Acabei de partir a cara ao dono. Daqui por uns dias devolvo-lhe o carro. Ele não tem tomates para ir à polícia.’
Não nasceu no Bairro. Quando foi despejado da casa onde vivia por não pagar a renda, mudou-se para cá, para casa de um amigo. Deixou-se ficar algumas semanas enquanto procurava emprego. A Michele propôs-lhe trabalhar num duo com ela, num bar na Baixa. Durante a noite passou a chamar-se Fantastic Francis. O duo teve sucesso até um cliente se apaixonar por ele e lhe propor sair do bar para ir viver com ele. Ele aceitou e acabou-se a parceria.
Andou feliz durante muito tempo. Frequentava a alta sociedade, dava festas na nova casa, participava em orgias, viajava com o namorado, comprava muita roupa, consumia muita cocaína.
Vinha muitas vezes com o namorado ou com alguns amigos ao Bairro fazer as compras da semana.
Ele e o ‘doutor Paulo’, o namorado, formavam um casal estranho. Francisco era um rapaz novo, bonito, alto, forte e muito pouco efeminado. O ‘doutor Paulo’ era baixo, magricela, cabelo ralo e grisalho, olhos opacos e bastante feminino. Mas era rico e famoso.
Deram-se bem até ao dia em que o Francisco, num estado de menor lucidez, perdeu a paciência e espancou o ‘doutor Paulo’. Roubou-lhe o carro e desapareceu. O ‘doutor’ ficou durante muito tempo abatido e triste, até ao dia em que encontrou o carro estacionado à porta de casa, chave na ignição e um bilhete que dizia ‘Há muitos mais cus por aí. A matrícula já é conhecida no Aleixo.’
O Francisco continua a dançar, tem vários nomes artísticos e uma carreira reconhecida em todo o país. Ocasionalmente visita o Aleixo.
O ‘doutor’ também tem a sua carreira reconhecida no país. Ocasionalmente refere o Aleixo como ‘um bairro do Porto, que eu conheço vagamente, só de passagem’, em conversas com amigos ou num artigo para um qualquer jornal diário, a propósito de algum assunto sem interesse.
segunda-feira, maio 16, 2005
EDP ou a Electricidade do Paulo.
Paulo Linhas é um ilustre comerciante do Bairro do Aleixo, com talentos reconhecidos em toda a cidade. É perito em transacções arriscadas e tem o exclusivo das substâncias mais radicais. Recentemente ocupou dois apartamentos desabitados, no mesmo andar de uma das torres. Deitou uma parede abaixo e construiu uma sala de exposições de fazer inveja aos representantes de algumas marcas sul-americanas. Pintou paredes, instalou novos equipamentos, renovou as instalações eléctricas e as canalizações.
O único problema que não conseguiu, ou não quis, resolver sozinho foi a questão da electricidade necessária para abastecer as novas instalações, pelo que teve que pedir auxílio à vizinha do lado, a Dona Rosa. ‘Fez uma puxada do quadro dela e resolveu o problema!’, contou-me o Xico electricista da terceira torre.
Dona Rosa é uma senhora viúva com mais de sessenta anos, que ficou muito baralhada quando recebeu uma conta para pagar de valor bastante superior aos seus rendimentos mensais.
Apesar de ser uma mulher doente, está habituada a resolver os problemas sem ajuda de ninguém. ‘Se o meu falecido fosse vivo, contava-lhes uma história. Que isto aqui é uma pouca vergonha.’ O falecido morreu há mais de dez anos e a única coisa que deixou foi um filho que não dá sinal de vida há pelo menos sete.
A dona Rosa fez uma espera ao Paulo Linhas no patamar das escadas e quando o viu a subir, acompanhado de duas raparigas que mal se seguravam de pé, desatou aos gritos e a chamar-lhe uma quantidade de nomes difíceis de transcrever. Na rua ouviu-se ‘...uma pouca-vergonha, uma mulher a viver de quarenta e dois contos por mês e estes gandulos ainda nos roubam mais. Filho da puta é o que tu és. Se isto não acaba chamo a polícia e acendo um fósforo aí dentro para ver se morres...’ Alguns vizinhos aproximaram-se, mas ninguém teve coragem para apoiar a dona Rosa. Diz quem ouviu que ela também insultou toda a gente que a olhava calada, enquanto que a única coisa que saiu da boca do Paulo Linhas foi um muito doloroso ‘Ai o caralho da velha!'
Saiu de casa a correr e a fazer juras de vingança. ‘Ele vai ver. Ando eu aqui a contar tostões para viver...’
Os clientes do Paulo Linhas encontraram a loja fechada nos dois dias seguintes. ‘Por precaução’, soubemos nós. A loja é importante e o volume de negócios justifica alguma cautela e um contador de electricidade dedicado.
sábado, maio 14, 2005
Joaquim III.
‘Boa noite. Há muito tempo que andamos à tua procura.’ Estava encostado a um caixote do lixo, a recuperar energias para caminhar, quando um carro parou ao seu lado. Saiu um tipo novo, bem vestido, quarenta e tal anos, óculos de massa e porte seguro. Disse-lhe qualquer coisa que o assustou. ‘Eu não fiz nada. Não tenho nada comigo.’ Estava cansado e sem coragem para resistir. Há quase vinte horas que não comia nada e a ressaca estava quase a chegar, outra vez.
Olhou para o tipo que lhe falava. Deslassaram-se-lhe os joelhos e caiu. Desmaiou. Conseguiram sentá-lo no banco de trás e arrancaram a grande velocidade. Desde essa noite ninguém voltou a ver o Joaquim nem no Bairro do Aleixo, nem na bomba de gasolina da BP.
Alguns dias antes o mesmo carro passou várias vezes no Aleixo. Sempre com as mesmas pessoas a fazerem perguntas sobre uma fotografia muito manuseada. Diziam-se familiares dele. Precisavam de o encontrar, de saber onde ele estava.
sexta-feira, maio 13, 2005
Ana II.
Demorou quase um ano a regressar. Mas regressou, como quase todos. Os amigos que faziam as compras por ela morreram, desapareceram. Lembra-se do nome de um contacto. Saiu do comboio em S. Bento. Apanhou o 35 na Avenida dos Aliados. Nuns auscultadores ouvia David Bowie.
Foi fácil reconhecê-la ao longe: o mesmo passo seguro, o mesmo cabelo forte, a mesma atitude. Abandono o sonho de se transformar noutra mulher. Nunca sentiu as luzes de um palco, mas durante este ano teve muitas oportunidades para sentir as luzes de quartos de hóteis, grandes e pequenos, luxuosos e bafientos. ‘As luzes são sempre diferentes, é quase a única coisa que me lembro.’
Ter que fazer uma viagem de quase uma hora para comprar dez gramas de cocaína, não a faz sentir bem. ‘O que é que eu posso fazer? Não conheço mais ninguém e não tenho feitio para andar para aí a fazer perguntas.’ Já perdeu algum do sotaque crioulo. Está cansada do trabalho que tem. ‘Mais ano menos ano, venho para cá. Há mais clientes aqui. Lá são sempre os mesmos.’ Diz-me que tem alguns amigos na cidade, vivem do outro lado, para lá das Antas. Durante o último ano trabalhou em dois ginásios e num hotel. Demorou algum tempo a ter os papéis em ordem, mas como conseguiu um emprego oficial foi mais fácil. ‘Também trabalho por anúncio. Só em hotéis. Nunca faço mais do que quatro ou cinco clientes por semana.’
Depois de algum tempo de espera sentada no café recebeu a encomenda e pode regressar. O David Bowie continuava a cantar.
‘Se me mudar para cá até posso começar só a fazer hóteis. Qual é problema?’
terça-feira, maio 10, 2005
Auto-retrato.
Um boné, umas sapatilhas grandes compradas por metade do preço no sítio certo, umas calças de ganga gastas e argola na orelha. Talvez uma tatuagem no braço direito ou num ombro. Um carro preto, estofos vermelhos desportivos, escape modificado a rosnar, autocolantes junto à matrícula, emblemas do fê cê pê pendurados no retrovisor e talvez um cachecol no banco de trás. Tops justos, decotes significativos, fio dental visível através das calças brancas muito justas, maquilhagem exagerada, madeixas loiras e verniz das unhas sempre a estalar. Dizer ‘grande cena’ e ‘ouve lá’ repetidas vezes, mastigar chiclets com a boca aberta e ter os dentes tortos sem vergonha de sorrir. Mandar o colega ‘p´ró caralho’ sem motivo, exclamar ‘foda-se!’ com musicalidade e ficar fodido, ou mesmo muito violento, quando nos chamam ‘gunas’. Ameaçar o cliente com danos ‘nas trombas’, fornecer mercadoria de primeira, ser claramente honesto e ter amigos com nomes de animais domésticos. Soltar o cão com ar de assassino sempre que olham para ‘a minha miúda!’. Andar de mota sem capacete, numa yamaha também com o escape alterado e pintura sempre diferente. Estacionar o carro em segunda fila, abrir os vidros e aumentar o volume do som com os graves a arranhar. Entrar no carro do amigo estacionado em segunda fila e abanar a cabeça ao som da batida. Ouvir kizomba e kuduro, vender pastilhas no Porto Rio, no Swing ou no Rox. Não curtir jornalistas nem fotógrafos com pretensões a cronistas sociais. Ameaçar engravatados que nos olham com ar curioso, que ‘acham giro viver aqui’ e que nunca fumaram um charro. Espancar e assaltar putos de cabelo comprido que calçam sapatilhas Adidas, usam jeans anunciados pelo Cristiano Ronaldo e curtem vir comprar ‘as tais cenas’. Fingir não curtir a malta da Pasteleira e dos outros bairros, mas ter negócios regulares com eles. Dizer alto e bom som ‘Viv’ó Aleixo!’
domingo, maio 08, 2005
Zé Rosinhas.
Existem demasiados Josés no Bairro do Aleixo, por isso utilizaremos só Rosinhas.
É feio, tem os dentes tortos e solta demasiados perdigotos quando fala. Tem o cabelo comprido, com caracóis ligeiramente oleosos, voz nasalada e, apesar disso, gosta de falar. Alguns amigos dizem que ele ouve mal, que é por isso que nunca percebe o que lhe dizem.
Cresceu no Bairro mas estudou na Baixa e ainda hoje é lá que está a maior parte dos seus amigos. O seu grande problema é as mulheres. Tem quase trinta anos e não consegue ter nenhuma namorada. Por mais que tente, todas as aproximações que faz correm mal. Um dia sugeriram-lhe que tentasse os homens, talvez a sorte mudasse.
Ele ficou chateado, se calhar também não ouviu bem o que lhe disseram, e continuou a insistir. Desilusão atrás de desilusão. Não é católico, mas tem fé. Tem fé em si e no seu talento. Costuma dizer que um dia a sorte vai mudar, que um dia alguém vai reconhecer as suas qualidades, que um dia vai ser artista. Até esse dia chegar, investe tudo o que tem numa editora de livros caseiros com nome próprio. Publica os seus poemas e outros escritos de amigos que gostam dele e o admiram pela boa droga que ele arranja. ‘A droga deve ser usada para apurar os sentidos’, está sempre a dizer.
Dizem que não se dá com o Joquinha das Claquetas, ou talvez seja o Joquinha que não se dá com ele. São rivais no monopólio do talento futuro do Bairro do Aleixo. O Rosinhas frequenta os cafés históricos da Baixa e lê livros em segunda mão, o Joquinha vê filmes em línguas europeias e compra t-shirts em lojas caras. O Rosinhas anda sempre com um caderninho gasto onde escreve palavras, versos e ideias, o Joquinha tira fotografias com uma máquina velha e junta dinheiro para comprar uma máquina de filmar. (Se fosse amigo do Brocas já tinha uma por um preço de amigo...)
Esta inimizade entre os dois é uma questão de orgulho, no fundo sabem que se unissem esforços conseguiam criar um ‘centro criativo’ ou um ‘centro de reflexão cultural’ no Bairro do Aleixo, onde seriam os indiscutíveis mentores do pensamento artístico entre a vizinhança. Sabem que só assim conseguiriam inscrever-se definitivamente na história da cidade, ou do Bairro. Podiam até pedir ajuda à Flor do Aleixo, e trocar algum trabalho na campanha eleitoral por um bom apadrinhamento junto dos meios políticos da cidade.
A verdade é que nenhum dos dois quer dar o braço a torcer. E mal a ideia de reconhecimento no difícil mundo artístico da cidade lhes aflora ao espírito, depressa a reprimem em prol do grande gesto criativo marginal. Há uma frase de autor desconhecido que ambos citam de cor nestas circunstâncias, sempre sem o outro saber: ‘A mãe de todo o gesto artístico é o sofrimento e não o reconhecimento. Prefiro ser criador sem capital do que vendido ao capital dos criadores.’
sexta-feira, maio 06, 2005
Flores.
No Bairro do Aleixo há uma flor oficial e muitas flores bonitas.
Lembro-me das estrelícias que percorrem as ruas nas mãos de um homem, ainda sem nome. Um homem que caminha sereno pelo Bairro segurando na mão esquerda um ramo de flores. Sempre iguais, sempre vivas. Não as tenta vender e não gosta de as oferecer.
É magro, alto, traz sempre vestido um casaco castanho de malha, umas calças cinzentas desbotadas e uns sapatos velhos, muito gastos.
Aparece quase todos os dias com o ramo de flores. Sempre frescas, sempre vivas. Só sorri quando sente o cheiro a ‘canela, limão e malmequer’, diz às vezes quando lhe perguntam ‘a que cheiram as tuas flores?’. Noutras ocasiões responde ‘a rosas’, e continua a caminhar com o passo sempre sereno.
Estrelícia é uma palavra difícil de pronunciar, talvez por isso não lhe façam mais perguntas. Ninguém sabe onde vai ele buscar as flores.
No domingo passado foi passear junto ao rio. Caminhou até às palmeiras, regressou e continuou ao longo do rio até à alfândega. Deixou um ramo inteiro de estrelícias, quase oito, a boiar no rio, junto ao ancoradouro da flor do gás. Depois esteve alguns dias sem aparecer.
Uma senhora da mercearia sentiu a sua ausência. Outras pessoas comentaram ‘era da família’ ou diziam que ‘às vezes era visto com o Paulo’.
Hoje regressou com os passos sempre serenos. Sorriu muito e repetiu que ‘por causa do calor cheiram mais hoje’. E cheiravam. Várias pessoas sentiram.
No café disse que cheiravam a água, ‘a água com sal, mas sem ser do mar: estão bonitas, mas hoje não são muito frescas!’ Estavam em casa dele há um dia.
quinta-feira, maio 05, 2005
Vanessa.
‘Maria Albertina, como é que foste nessa, de chamar Vanessa à tua menina.’
Estamos tristes. As ficções foram ultrapassadas.
segunda-feira, maio 02, 2005
Época de canções.
Já se tinha notado um aumento da afluência de cantores informais nesta Primavera. Do Largo do Ouro, ao centro comercial, encontram-se transeuntes que trauteiam cantigas. ‘Matar esta sede, matar este desejo...’, ouve-se amiúde na rua.
Fomos agora informados que se prepara um festival de Canções, Cantigas e Cantilenas em Lordelo do Ouro. Ao que parece é a prenda primaveril da muito activa Junta de Freguesia, pela mão do seu presidente. Antecedendo assim outro grande acontecimento nacional que é a Festa da Francesinha.
Várias pessoas do Bairro estão a ensaiar para vencer a competição. Se por acaso isso não acontecer ‘fodemos a tromba a alguém!’. E alguém pode ser mesmo a pessoa que ouse cantar melhor do que os nossos.
As músicas não precisam de ser originais e os concorrentes têm direito a duas tardes para ensaiarem com a banda contratada para o acompanhamento.
Em época de canções e festivais, toda a gente está ocupada e há quem receie que a imagem comercial do Bairro e a capacidade de resposta às solicitações dos clientes saiam prejudicadas. Para evitar isso, a CMTCONBA emitiu um comunicado para a imprensa com a informação de que, por ocasião destes extraordinários eventos, as lojas vão alargar o horário de funcionamento para as vinte e quatro horas diárias, ou seja, mais três do que o habitual.
A equipa de manutenção do Bairro do Aleixo terá que trabalhar mais horas devido a este alargamento de horário e não poderá participar nos eventos.
‘Alguém tem que se sacrificar’, disse resignado o porta-voz da equipa de manutenção.