Ana II.
Demorou quase um ano a regressar. Mas regressou, como quase todos. Os amigos que faziam as compras por ela morreram, desapareceram. Lembra-se do nome de um contacto. Saiu do comboio em S. Bento. Apanhou o 35 na Avenida dos Aliados. Nuns auscultadores ouvia David Bowie.
Foi fácil reconhecê-la ao longe: o mesmo passo seguro, o mesmo cabelo forte, a mesma atitude. Abandono o sonho de se transformar noutra mulher. Nunca sentiu as luzes de um palco, mas durante este ano teve muitas oportunidades para sentir as luzes de quartos de hóteis, grandes e pequenos, luxuosos e bafientos. ‘As luzes são sempre diferentes, é quase a única coisa que me lembro.’
Ter que fazer uma viagem de quase uma hora para comprar dez gramas de cocaína, não a faz sentir bem. ‘O que é que eu posso fazer? Não conheço mais ninguém e não tenho feitio para andar para aí a fazer perguntas.’ Já perdeu algum do sotaque crioulo. Está cansada do trabalho que tem. ‘Mais ano menos ano, venho para cá. Há mais clientes aqui. Lá são sempre os mesmos.’ Diz-me que tem alguns amigos na cidade, vivem do outro lado, para lá das Antas. Durante o último ano trabalhou em dois ginásios e num hotel. Demorou algum tempo a ter os papéis em ordem, mas como conseguiu um emprego oficial foi mais fácil. ‘Também trabalho por anúncio. Só em hotéis. Nunca faço mais do que quatro ou cinco clientes por semana.’
Depois de algum tempo de espera sentada no café recebeu a encomenda e pode regressar. O David Bowie continuava a cantar.
‘Se me mudar para cá até posso começar só a fazer hóteis. Qual é problema?’
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