No Bairro do Aleixo

quarta-feira, junho 30, 2004

Os cafés do Aleixo

Na esquina das Condominhas com a Rua do Aleixo abriu há poucos meses um café, originalmente chamado 'Casa do Café'. Tem um balcão pequeno virado para a rua, onde me sento regularmente a folhear o jornal e a ver pessoas a passar. Hoje cruzei-me com um homem gordo e de voz instável que variava do desagradável para o insuportável. Falava como quem grita. Pensei que podia ser um veterano do ultramar ligeiramente traumatizado ou apenas um adepto de futebol habituado a gritar com a mulher quando a selecção sofre um golo. Tinha muito mau hálito. Falava com o dono do café, um homem baixo, de bigode grande, óculos dos anos setenta e camisa branca com riscas castanhas. O ponto central da conversa era o trânsito naquele cruzamento. Os carros que sobem as Condominhas têm alguma dificuldade de visibilidade em relação a quem vem do Aleixo 'e agora não se sabe muito bem como é que vão ficar as coisas com o novo empreendimento que está a ficar quase pronto'. A voz a gritar dizia que 'se calhar a entrada principal vai ser lá por baixo e aqui fica só uma porta de homem, sabe?. Uma porta de homem, assim como esta, só para uma pessoa, está a ver? Certo?’ ‘Cá para mim ainda vão cortar o trânsito neste bocado da rua, ou então pô-la em sentido único. Era o melhor.’ ‘Pois era. Isso era o melhor. Quem quisesse ir para cima tinha que ir por dentro do bairro em vez de vir por aqui. Certo?’ ‘Não sei. Eles é que sabem, eles é que têm os livros.’ ‘Pois é.’ Calaram-se durante dez minutos para pensar no que tinham dito. Saí antes de começarem a falar das conclusões. A conversa não ia ajudar em nada a minha investigação.

sexta-feira, junho 25, 2004

Negócios em movimento

Há algum tempo comecei a reparar numa velha carrinha branca estacionada quase todos os dias em cima da curva, junto aos contentores do lixo. Era conduzida por um homem gordo e sujo, acompanhado por outro homem mais velho com um bigode que dava vontade de rir.
Em dias de futebol, era possível ouvir o relato no auto-rádio da carrinha. Às vezes concentravam-se duas ou três pessoas de ouvido alerta. Ao domingo ouviam a sessão matinal da Rádio Renascença, a emissora oficial do Aleixo, davam um pulinho ao café para beber um copo, fumar um cigarro e, durante a tarde, espreitar o programa de música portuguesa. Tirando isto, trabalhavam sempre.
Pelo que pude observar, a carrinha estava cheia de frascos e de outros pequenos objectos. Os dois homens mexiam nos frascos com atenção e cuidado, usavam uns objectos pequenos para movimentar outros objectos pequenos e, pela atenção que dedicavam à função, podíamos imaginar dois artesãos nómadas a trabalhar em objectos para serem vendidos à noite no Passeio Alegre.
Mas estamos no Bairro do Aleixo e missangas é coisa que nunca se vendeu por aqui, nem é habitual fazerem-se tranças no cabelo, daí eu ter facilmente concluído que dentro daquela carrinha funcionava uma pequena unidade de transformação de estupefacientes, subversiva e alternativa às existentes nas torres do Bairro.
Enganei-me nesta conclusão.
Informaram-me que a carrinha não se dedica apenas à transformação de estupefacientes. É apenas o primeiro modelo de um projecto-piloto testado no Bairro para, posteriormente, ser implementado noutros pontos da cidade. Ou seja, trata-se de uma carrinha equipada para dar assistência na reparação de pequenas avarias domésticas, tais como entupimentos, curto-circuitos, electrodomésticos avariados, arranjos de portas e fechaduras, entre outros. Para além desta utilidade também tem a possibilidade de transformação de estupefacientes integrada nos equipamentos instalados, mas esta actividade é secundária e tem como único objectivo a aproximação das duas facções de habitantes do Bairro, ou seja os negociantes e empresários individuais que se dedicam ao tráfico e os trabalhadores por conta de outrem que têm outras áreas de actividade.
Informaram-me ainda que agora já circulam várias destas carrinhas pela cidade e que se está a tentar estender o programa a outras cidades. Dizem que é uma medida extraordinária para ‘a integração dos traficantes em actividades mais úteis à sociedade, para a recuperação de carrinhas abandonadas ou em mau estado de conservação e ainda uma contribuição para a redução do custo da mão-de-obra no que diz respeito a reparações domésticas’.

quarta-feira, junho 23, 2004

O Euro no Bairro

O Campeonato Europeu começou há alguns dias e a vida por aqui continua. As previsões em termos de afluência estavam certas. O volume de negócios aumentou a olhos vistos e as pessoas estão contentes. As janelas estão com bandeiras hasteadas e velas acesas. Visto de longe o Bairro parece um ponto de referência para os aviões que chegam do resto da Europa. É BONITO! A polícia anda ocupada com os estádios e com os hooligans, não tem aparecido muito. A única coisa a lamentar é o facto de a nova carreira da STCP ainda não estar a funcionar. Seria uma boa ajuda para os estrangeiros saberem que podem contar com um transporte público para cá chegar.

segunda-feira, junho 21, 2004

Uma pequena nota sobre as receitas

Quase todos injectam heroína por norma, às vezes fumam base de coca e quando não há mais nada injectam uma mistura do que lhes dão. Tendo em conta que uma dose de heroína custa cerca de trinta euros e uma grama de base custa entre cinco e dez euros – corrijam-me se os preços não são estes! – e que eles, no estado em que estão, precisam de pelo menos duas doses por dia, é fácil concluir que cada uma destas pessoas reúne em moedas, porque quase todos vivem de moedas nos semáforos ou nos estacionamentos, cerca de sessenta euros por dia mais uns trocos para uma sandes ou uma sopa. De outra forma: sessenta moedas de um euro ou cento e vinte moedas de cinquenta cêntimos ou…

sábado, junho 19, 2004

Filipe II.

Nunca mais o voltei a ver. Hoje tive com vontade de lhe falar. De saber mais coisas sobre o tráfico no Bairro das últimas semanas. Não tenho estado informado. Sei que houve uma rusga há algum tempo atrás. A polícia entrou numa casa e prendeu uma senhora muito conceituada, fornecedora do Bairro e de grande parte da cidade. Depois disso o movimento acalmou durante uns tempos. Queria saber o que aconteceu nesse tempo calmo, para onde foram os negócios, se os preços sofreram com isso, se a qualidade piorou. Queria saber como estão os outros bairros: o Cerco, Francos, Aldoar, o D. Leonor. Ele pareceu-me informado, podia ser um bom contacto para a minha investigação. Vou procurá-lo.

quarta-feira, junho 16, 2004

João II.

Continua por cá. Hoje estava ao lado do supermercado, debaixo do sol, a raspar uma pedra na entrada de um prédio. Deixou cair algumas migalhas de pó e estava a tentar recuperar do acidente. A seringa que espetou no braço, para além de heroína, continha uma quantidade significativa de impurezas e partículas de cimento. Não sei qual é o grau de pureza da heroína comprada no Bairro, mas talvez ninguém se preocupe com isso agora.

sábado, junho 12, 2004

Uma nova carreira

Hoje o Bairro teve um cliente especial. Conduzia um autocarro de oitenta lugares, vazio. Estacionou onde todos estacionam, desceu ao Bairro, regressou e foi-se embora. Nunca ninguém tinha visto nem o motorista nem o autocarro.
Esta visita fez com que surgissem novas ideias para a promoção regional do Aleixo. Depois de uma feroz discussão entre os retalhistas da torre dois e os pequenos traficantes da torre cinco, chegou-se à conclusão de que o melhor seria nomear um porta-voz para transmitir as novas ideias ao Presidente da Junta de Lordelo do Ouro nas audiências semanais que ele promove e nas quais pretende ouvir a população.
Após várias horas de análises, de gritos e de ameaçadas, o porta-voz nomeado resumiu em poucas palavras o que iria comunicar ao Presidente da Junta: ‘queremos colocar uma paragem de autocarro em frente à porta da primeira torre, a que tem o posto de transformação da EDP ao lado!’ Todos concordaram que essa era a proposta fundamental, mas demasiado simples na sua formulação para ser apresentada ao poder local. Desenvolveu-se então um projecto de concretização desta ideia para justificar o investimento solicitado.
Em primeiro lugar seria necessário criar uma nova carreira, digamos que a número 100, para fazer o percurso entre o Freixo e o Castelo do Queijo sempre pela marginal, apenas com um desvio pelo meio do Bairro, descendo depois as Condominhas e continuando pela marginal. Esta carreira teria três paragens especiais em três pontos estratégicos. E aqui seria necessária a colaboração de outras Juntas de Freguesia e talvez mesmo da Câmara Municipal.
A primeira destas paragens, no sentido Freixo – Castelo do Queijo, seria nas bombas de gasolina perto da ponte D. Maria Pia: uma paragem de 30 minutos; a segunda seria na Ribeira, imediatamente antes ou imediatamente depois do túnel: também 30 minutos; a terceira seria no Aleixo, e aqui, dada a diversidade do mercado, faríamos uma paragem de 50 minutos.
Para além destas seriam estudadas outras paragens normais, apenas para entrada e saída de passageiros.
Também o actual sistema de senhas seria revisto para esta carreira específica, porque nas três paragens especiais os passageiros devem sair e poder voltar a entrar sem ter que usar um novo título de transporte. A sugestão dos moradores vai no sentido da uniformidade europeia nos transportes públicos, ou seja, uma senha para um determinado período de tempo, que seria definido posteriormente.
Esta medida traria vantagens óbvias para todos os intervenientes: a popularidade do Presidente da Junta, ou dos Presidentes, no caso de parcerias com as outras freguesias, subiria consideravelmente; a STCP corresponderia às expectativas de uma classe quase sempre esquecida; o Bairro aumentaria a sua produtividade e a sua imagem na cidade melhoraria; por fim, os utentes, quer dos serviços prestados no Bairro, quer dos transportes públicos ficariam com mais alternativas de transporte, o que corresponde a uma óbvia melhoria da qualidade de vida.
O porta-voz nomeado ficou encarregue de marcar a audiência com o Presidente da Junta e comprometeu-se a elaborar um relatório sobre os resultados da reunião.

terça-feira, junho 08, 2004

Rui.

Também não tem uma perna. De barba escura, muito dura, olhar agressivo e a cara marcada por feridas violentas. Passa os dias no cruzamento perto da Faculdade de Letras. Vai de bicicleta do Bairro até lá. Pedala com a perna esquerda, na mão direita equilibra as muletas e sobe, sobe, sobe. Quando algum autocarro o ultrapassa ele vê o equilíbrio comprometido. Insulta o motorista. Continua a pedalar. Estaciona a bicicleta no triângulo que divide quem segue em frente e quem vira à direita. Espera pelo sinal vermelho e percorre todos os carros com a mão estendida. Alguns condutores fecham o vidro para não terem que lhe sentir a respiração e a voz pesada a dizer ‘uma moeda por favor’. Aos outros tenta explicar que está doente da perna, da única que ainda tem, que a gangrena lhe levou a outra há seis meses, que precisa de medicamentos, que precisa de ir ao médico. Às vezes só pede moedas porque ou o desânimo ou a ressaca não lhe permitem gastar tempo e palavras com mais explicações. Gosta de insultar as pessoas.

quarta-feira, junho 02, 2004

O Bairro do Aleixo e os turistas

Por uma curiosa e feliz coincidência há alguns anos construiu-se uma nova pousada da juventude perto do Bairro, junto ao Fluvial. Antes disso já existia um hotel importante ao lado do Centro de Saúde. Estas duas unidades hoteleiras fazem com que exista alguma frequência de turistas nas ruas circundantes, o que por si só não nos traz nenhuma vantagem: imagino que qualquer turista deva ser avisado de que não existem nem atracções nem lojas típicas aqui, imagino que qualquer cidadão europeu mal se aproxime do Bairro tenha vontade de voltar para trás – a menos que viva nos subúrbios de Edimburgo e, nesse caso, o Bairro não trará nenhuma novidade digna de visita. Ou seja, o turismo, uma das principais fontes de rendimento nacional, serve muito pouco a nossa comunidade.
No entanto acontecem coisas boas: por iniciativa da Comissão de Moradores, Traficantes, Consumidores e Outros Negociantes do Bairro do Aleixo (CMTCONBA) tem vindo a ser divulgado em alguns guias os produtos e serviços especializados do Aleixo. Mesmo que esta divulgação ainda não possa ser feita de uma forma específica e directa, tem dado alguns frutos. Ainda ontem assisti a um grupo de quatro jovens da Europa, falantes de inglês, que se deslocaram expressamente ao nosso Bairro para comprovar in loco a qualidade dos nossos produtos e confirmarem assim a simpatia e a vontade de bem servir da nossa comunidade. Infelizmente estes jovens dormiam na Pousada da Juventude, o que cá para nós significa não terem dinheiro suficiente para movimentar a primeira torre. Ou seja, limitaram-se a comprar dois contos de haxixe, e, verdade seja dita, foram muito bem atendidos: ninguém insistiu para que comprassem outras coisas, ninguém roubou uma máquina fotográfica digital da Sony, ninguém ficou com a carteira de um rapaz chamado Elliot Smith, nascido em Newcastle, no ano da graça de 1976. Estas informações foram obtidas por mim, porque um conhecido conversou com eles em termos bastante íntimos. Garantiram também que, dada a simpatia com que foram recebidos, iam escrever para o Lonely Planet recomendando a inclusão de uma referência ao Bairro do Aleixo na secção de Circuitos Alternativos ou na secção de Trekking na Península Ibérica, para as próximas edições do guia.
Esta visita faz-nos ainda tirar outras conclusões: é urgente e necessário investir na promoção e na imagem do Bairro junto das delegações de turismo e junto dos hotéis, principalmente dos hotéis com mais de três estrelas que é onde há asiáticos com três e quatro câmaras de filmar.