No Bairro do Aleixo

domingo, agosto 29, 2004

Foda-se, gamaram-me a bicla!

Há, ou havia até agora, um princípio básico entre moradores do Bairro. Nunca, mas nunca, se subtrai nada a quem reside aqui e muito menos a quem vota nas reuniões de Assembleia Geral da Comissão. Os chamados residentes com direito de voto. Ora, um residente com direito de voto que, por acaso, não tem negócios ilícitos – ou melhor, não tem muitos negócios ilícitos – saiu para uma passeata dominical, de mão dada com a sua mais que tudo. Uma caminhada junto ao mar, com direito a gelado e tudo! Ao fim de quatro horas com muitos beijinhos e com uma grande tensão junto às peças de roupa interior, regressa a casa para uma ligeira refeição à base de torradas com mel e leite com chocolate. Abre a porta da torre onde mora. Diz olá a dois clientes que descem do primeiro andar. Lança uma vista de olhos ao vão da escada onde guarda a bicicleta com carretos de mudanças shimano. Vê o lugar da bicicleta e um balde vazio, que costuma lá estar por causa das inundações de Inverno. Olha para a porta. Vê os dois clientes saírem e a porta a bater. Aproxima-se uma rapariga. Empurra a porta, entra e sobe as escadas. Ele volta a olhar para o vão da escada e exclama: ‘foda-se, gamaram-me a puta da bicla!’

sábado, agosto 28, 2004

Pedro II.

‘Tenho dormido mal. Já quase não sinto as pernas.' Fechava os olhos e tentava controlar a vontade de chorar. ‘Estou apaixonado, sabes? Está internada. Mandou uma cena má.’ Passou os dois últimos dias e as duas últimas noites na paragem do autocarro. Ela disse-lhe que voltava para casa. Ainda não chegou. Ele continua à espera. Às vezes desce ao Bairro para saber se há notícias, comprar alguma coisa, dizer olá a alguém. Tem faltado às reuniões da Comissão.

quinta-feira, agosto 26, 2004

Hélder.

Não é fácil falar dele. Tem o mesmo nome que eu e a conversa que tivemos prolongou-se mais tempo do que o que devia. Tem vinte e oito anos e não é do Aleixo. Vem cá quando está desesperado. ‘Tens que me ajudar, eu já não aguento mais. Telefona à minha mãe. Diz-lhe para ela me vir buscar. Diz-lhe que eu já não aguento mais.’ Olhava-me com os olhos muito abertos, muito claros. Não era possível telefonar à mãe, não se telefona a nenhuma mãe por causa disto. Ainda temos alguma sensibilidade e a necessidade de boas histórias não é assim tão grande. ‘Se for preciso eu ponho-me de joelhos. Preciso de dez euros, por favor, eu preciso de cortar a ressaca.’ Cinco euros para a branca, cinco euros para a castanha. Não é preciso fazer confusões. Telefonei à mãe dele. ‘Quem é você? O que está a fazer com o meu filho?’ Não consegui falar. Ele falou-lhe. Pediu ajuda. Pediu ajuda. ‘Não consumo desde segunda-feira. Saí de casa no domingo. A minha mãe deixou de me dar a metadona. Eu não aguento mais.’ Vestia um casaco impermeável azul. O cabelo fino penteado para o lado. Falava muito devagar e com os olhos muito abertos. Prometeu nunca mais voltar ao Bairro.

terça-feira, agosto 24, 2004

Ana.

É uma mulher grande, negra, com um rosto duro e muito marcado. Arranja a farta cabeleira, que lhe cai pelos ombros, com gestos masculinos. Atravessa a rua com passos seguros como se soubesse que eu a observo, como se imaginasse que toda a gente a observa. Se fosse homem teria querido ser uma estrela, chamar-se Ágata Top, ser adorada todas as noites, ser desejada por homens e invejada por mulheres. Não sabe porque é que veio cá, não está habituada a ser ela a comprar droga. Está longe da sua cidade e fala mal português. Veio porque, dos sítios que lhe falaram, o Bairro do Aleixo era o que estava mais perto.

domingo, agosto 22, 2004

Strip no Bairro

Depois do desafio aqui apresentado no final do mês passado, em parceria com a CMTCONBA, temos o prazer de informar que a resposta certa era... a última opção!
Os quatro residentes deslocaram-se ao Champanhe Club para estabelecer alguns contactos preliminares sobre a possibilidade de criar uma filial do Club no Bairro do Aleixo, no prazo de dois anos.
Entretanto e durante as duas últimas semanas realizaram-se algumas reuniões de trabalho entre a Comissão e os gestores do Club. Para já ficou acordado que a CMTCONBA vai ceder um terreno para a construção de uma casa de animação pós-laboral. A primeira sugestão contemplava a criação de um espaço com as mesmas características do já existente, mas a Comissão opôs-se a essa ideia alegando que o Bairro tem características próprias e que toda a gente ficaria a ganhar com a adaptação de um espaço desse tipo à clientela que frequenta o Bairro e que procurará, seguramente, outro tipo de eventos. Ou seja, recusamos ter apenas mulheres stripers e recusamos que as mulheres que vierem a trabalhar nesta casa sejam do leste europeu. ‘Para isso já há outras casa na cidade, temos que fazer uma oferta diferente.’
Sugerimos antes ter uma casa mista, com strip feminino e masculino alternadamente, respondendo aos desejos de todas as preferências sexuais. Sugerimos ainda que os homens e as mulheres stripers deverão ter alguma ligação com as restantes matérias comercializadas no Bairro, por exemplo, a mesma proveniência. A conclusão óbvia surgiu de imediato: a aposta em homens da América do Sul e em mulheres do Afeganistão é a opção correcta. ‘Ainda por cima podemos usar as burkas como factor de promoção. Integramos no negócio do lazer, mulheres de uma cultura completamente diferente e que arriscarão a vida por isto. Isso é muito bom para o negócio.’ Concluiu o representante do Champanhe Club. ‘Mas como é que conseguimos trazer mulheres do Afeganistão para cá?’, perguntou depois de um momento de reflexão. Um dos elementos executivos da Comissão referiu que já tinham sido feitas várias ofertas dos seus parceiros asiáticos, pretendendo enviar com as encomendas normais alguns excedentes femininos. ‘Nós nunca aceitámos porque não sabíamos o que fazer com elas. Agora podemos retomar esse contacto.’
Em relação aos homens sul-americanos, principalmente colombianos ou bolivianos, aparentemente a sua importação é mais fácil, mas mesmo assim é necessário e urgente activar alguns contactos com os fornecedores, no sentido de averiguar quais os custos e os riscos dessa operação.
Os responsáveis pelo Champanhe Club regozijaram-se com esta nova perspectiva de negócio e agradeceram à nossa Comissão o contacto, porque, segundo ele próprio, já estavam cansados de ter sempre a mesma característica dominante nas mulheres: ‘Isto abre novas possibilidades e caminhos. Estamos muito contentes e creio que devemos começar a apostar também no strip masculino numa outra casa que vamos abrir brevemente em Matosinhos.’
Com muitos apertos de mão fechou-se o acordo que vai ser escrito e ratificado em Assembleia Geral pela CMTCONBA.

sexta-feira, agosto 20, 2004

Uma carta de um Presidente da Junta

Os moradores do Bairro do Aleixo, bem como quase todos os habitantes de Lordelo do Ouro, encontraram ontem nas suas caixas de correio uma carta de Sua Excelência o Presidente da Junta de Freguesia da Foz do Douro a anunciar a realização da edição anual das festas de S. Bartolomeu e da Feira de Artesanato naquela freguesia.
Quero pois manifestar, de forma não oficial, a nossa indignação perante este facto, esperando que o Senhor Presidente José Pinto Ferreira leia este blog.
O BAIRRO DO ALEIXO NÃO FAZ PARTE DA FREGUESIA DA FOZ DO DOURO. NÃO QUER NEM FAZER PARTE NEM SER CONFUNDIDO COM QUALQUER COISA QUE ESTEJA RELACIONADA COM A FOZ DO DOURO.
O BAIRRO DO ALEIXO PERTENCE À FREGUESIA DE LORDELO DO OURO E ASSIM CONTINUARÁ A SER.
OS SEUS HABITANTES E ELEITORES RECUSAM-SE A COOPERAR COM QUALQUER TENTATIVA DE USURPAÇÃO DA ENTIDADE LOCAL E, SE PRECISO FOR, LUTARÃO ATÉ AO FIM PARA QUE COISAS DESTAS NÃO VOLTEM A ACONTECER!
Agora que estamos mais calmos, esperamos sinceramente não voltar a encontrar comunicados aos eleitores e aos cidadão de freguesias vizinhas nas nossas caixas de correio. Sabemos que é importante informar toda a gente sobre estes grandes acontecimentos culturais que, nas palavras do Senhor Presidente José Pinto Ferreira, mantêm ‘uma tradição que nos foi deixada pelos nossos antepassados’. No entanto seria mais correcto pedir a colaboração das outras Juntas de Freguesia para fazerem esse comunicado ou então divulgar o evento de uma forma que não comece por ‘Caro (a) Cidadão (ã) da FOZ DO DOURO’. Isto fere as nossas sensibilidades e o nosso orgulho bairrista!
Para terminar esta nota de indignação queria apenas lembrar o Presidente José Pinto Ferreira, que às vezes pode ser necessário mandar outra pessoa escrever as cartas, em regime de outsourcing, para evitar erros.
Creio que a Comissão se pronunciará oficialmente sobre este assunto nos próximos dias. Até lá, lembro que o José Cid vai estar nas Festas de S. Bartolomeu no dia 26 de Agosto. Uma oportunidade única! Nós não vamos perder o concerto.

sexta-feira, agosto 13, 2004

Tozé ‘Raquetas’ e os seus amigos

Trabalha numa loja de discos no Stop. Apanha todos os dias o 35 e sai perto de Belas Artes para poder caminhar um bocado, beber um café, fumar um cigarro e apanhar ar fresco antes de entrar ao serviço. Durante a hora do almoço lê os jornais desportivos, às vezes o Jornal de Notícias ou um romance que trás no saco. O último livro que leu chamava-se O Principezinho.
Despega do trabalho às seis e meia da tarde e volta a apanhar o 35. Sai a seguir ao Bairro e vai dar um passeio pela Pasteleira. Às vezes encontra uns amigos com quem costuma jogar futebol, bilhar ou, no Verão, ir à praia jogar raquetes, o seu desporto favorito.
Faz parte de um grupo de jovens do Bairro que não consome drogas. Nasceram aqui e não querem sair a menos que sejam obrigados. Se pudessem lançavam o Rui Rio ao mar, mas como ele prometeu não demolir as torres, até são rapazes para lançar só uns tomates na próxima visita do presidente ao Bairro.
Gostam do Aleixo e defendem o que é de cá como se da própria vida se tratasse. Apreciam mulheres, muitas mulheres, e têm aspirações a galãs de televisão. O tráfico passa-lhes quase ao lado. Quando alguém menciona a possibilidade de se juntarem à primeira torre ‘para ver se fazemos alguns cobres para bejecas’ ouve-se logo alguém a dizer ‘ouve lá, ò Nando, ´tás a perder a noção? Queres ficar sem tesão?’ Corre o boato de que a droga corta o tesão, mas eles ainda não consultaram este blog para se documentarem devidamente.
O Tozé, o Nando e o Nelo andam muitas vezes juntos. Estudaram até ao nono ano e depois fizeram-se à vida. Gostam de se divertir e são capazes de não beber durante duas semanas para poderem gastar dez contos numa noite no Rox, no Hard Club ou no Space. Muitas vezes assistem às reuniões da CMTCONBA. São o lado de sucesso do Bairro e o orgulho das famílias.
O Tozé teve um irmão em coma por causa de substâncias anormais misturadas com heroína. Agora ninguém sabe dele. Estará algures entre a Régua e o Pinhão a ganhar coragem para voltar a casa.
Um primo do Nando ficou sem um braço por causa da gangrena, meteu-se numa confusão com a policia e teve que pôr um olho de vidro. Orgulhava-se disso e, para se divertir, apanhava o 35 em hora de ponta e ia todo o caminho a brincar com o olho na mão.
O pai do Nelo foi preso por tráfico de heroína e por posse de arma durante uma rusga ao bairro. Foi a terceira e última vez até agora. Ainda não saiu de Paços de Ferreira.
O Tozé é o líder do grupo, como tem um bom emprego compra as melhores roupas, as sapatilhas da moda, vai a um cabeleireiro no shopping, ouve música diferente e até compra livros na FNAC.
Os outros têm por ele uma admiração secreta e uma pequena inveja por causa das raparigas. Nunca se manifestam porque o Tozé é um tipo discreto e apesar de ter mais sucesso com o sexo feminino não faz disso bandeira. Está apaixonado. É terceiro romântico do Bairro.

terça-feira, agosto 10, 2004

Isabel II.

Está sentada nuns degraus, olha para três sacos do minipreço com roupa e objectos pessoais, para uma pequena mala de viagem. Saiu de casa e não tem para onde ir. Um homem, o companheiro, procura alguns caixotes para passarem a noite. A primeira coisa que ela tira da mala é uma fotografia da mãe. Olha-a como viu fazer nos filmes. Não que esteja a pensar na mãe. Está a ficar uma noite húmida. Não tem dinheiro. Podia sempre pedir à mãe uma nota para comprar uma quarteira. As mães não recusam isso. Quase nunca.

quarta-feira, agosto 04, 2004

Rafael.

Não é um frequentador do bairro e foi tratado como um forasteiro. Vestia calções de Verão e umas havaianas vermelhas. Chorava e suplicava pelo euro e meio que lhe foi roubado. Implorava que o deixassem ir ao Aleixo recuperar as calças e as sapatilhas. ‘Não vais nada ao Aleixo!’ disse um tipo com um ar decidido. Rafael voltou a insistir ‘eu só quero o meu euro e meio. Roubaram-me o euro e meio, carago.’ ‘Nunca mais apareças aqui’. Começou a caminhar em direcção ao Bairro enquanto era vigiado por dois tipos agressivos. Ao fim de vinte metros foi empurrado, caiu e bateram-lhe, primeiro com murros e depois com um cinto. Chorou. ‘Eu só queria o meu euro e meio. Vou falar com a bófia.’ Duas pessoas observavam. ‘Achas que é melhor chamar a polícia ou tentar impedir que lhe batam mais?’ ‘Não sei. Se eles não lhe baterem não temos história para contar’. Continuaram a observar. Rafael foi-se embora a chorar como um menino que se perdeu dos pais num centro comercial.