No Bairro do Aleixo

quarta-feira, setembro 29, 2004

Joana.

Era uma rapariga adolescente, tímida. Caminhava sempre com o olhar no chão e fingia não ouvir os piropos. ‘Está a botar corpo’, diziam-lhe às vezes. Ouvia ainda os trolhas que trabalham nos novos edifícios: ‘tão jeitosa... até fazia sanguinho!’ Quando não ia para o liceu passava os dias entre o Café Caetano e a loja de utilidades, onde a tia trabalha. Às vezes consentia em acompanhar um amigo pela rua abaixo. Nessas alturas era possível vê-la a caminhar de olhos levantados e a gesticular ao ritmo da conversa.
Há uma semana estava sentada na berma do passeio, triste, à espera de um amigo. Um carro desfez a curva mais depressa e não a viu. Atropelou-a. Morreu na ambulância a caminho do hospital. Não se sabe muito mais sobre esta personagem.

segunda-feira, setembro 27, 2004

Os condutores do Bairro do Aleixo

Os condutores do Bairro do Aleixo conhecem-se bem. Basta dizer as duas letras de uma matrícula e o modelo do carro para se localizar imediatamente o dono. Os carros estacionam-se mais ou menos a monte: segundas e terceiras filas, atravessados no meio da rua, três rodas em cima do passeio ou ligeiramente encostados ao caixote do lixo. Quando é preciso chama-se com um grito o condutor para, entre duas passas num cigarro, arrumar o carro noutro lugar deixado vago.
Já aconteceu aparecerem carros desconhecidos no Bairro a incomodar o trânsito ou o acesso a um jardim. Nesses casos reúnem-se seis a oito pares de braços saudáveis e em dez minutos a passagem está novamente livre. Passados alguns dias há-de chegar o reboque da polícia e um agente para confirmar o número do motor, registar a apreensão e entregar o processo ao departamento que trata dos automóveis roubados.

domingo, setembro 26, 2004

Os cafés do Aleixo II

Nos cafés do Bairro do Aleixo vê-se futebol, bebe-se cerveja ou vinho branco, fuma-se Português Suave e fala-se de mulheres.
Grita-se. Pronunciam-se sons guturais e obscenidades. Fazem-se gestos expressivos.
Fala-se mal da sogra e arrastam-se cadeiras quando o assunto é ‘a tua filha’.
Nos cafés do Bairro do Aleixo não se usa a casa de banho – vai-se mijar a casa.
Não se diz mal do vizinho e ouve-se música alta a qualquer hora.
Os cafés do Bairro do Aleixo são discretos, cheiram a fritos e a tabaco.
Não se bebe café sem cheirinho, não se pede uma Sevenape - bebe-se gasosa.
Comentam-se as reuniões da Comissão, as últimas detenções e liberdades condicionais.
Aos cafés do Bairro do Aleixo levam-se as famílias, sacodem-se os pés e tira-se o chapéu à entrada.

sábado, setembro 25, 2004

Octávio III.

É nele que mais se nota a destruição. Já só dificilmente consegue manter o passo firme, caminhar. Não voltou a sorrir.

quinta-feira, setembro 23, 2004

Rui II.

Continua por cá e não parece perder a força na perna direita. Arranjou pedais novos para a bicicleta, o selim está protegido com uma almofada velha e os punhos estão revestidos com plástico. Continua a pedalar pelo Bairro todo.

quarta-feira, setembro 22, 2004

O Bairro do Aleixo vai mesmo mudar de sítio?

O projecto da Comissão foi aprovado por uma clara maioria de votos.
A Comissão convidou vários arquitectos portugueses e norte-americanos para apresentarem propostas para a re-localização do Bairro segundo um caderno de encargos elaborado depois do referendo. A análise dos projectos e a decisão final ficará a cargo de um júri constituído por alguns destacados moradores, homens de negócios e representantes da comunidade feminina e geriátrica do Bairro.
Nos últimos dias notou-se um aumento da boa disposição entre as pessoas. Apesar de o Verão estar no fim, compraram-se fatos de banho, baldes e pás para a areia, havaianas, pranchas de surf, toalhas de cores diversas, protectores solares e outros artigos de veraneio. Tudo isto porque a Comissão não omitiu que o porto de PC fica situado junto a boas praias, boas ondas e bom tempo.
Através de um comunicado aos habitantes a Comissão lançou um apelo e um desafio aos habitantes do Bairro, incentivando-os a serem arrojados e a procurarem novas formas de negócio que possam tirar partido da nova situação: ‘O Bairro não pode ficar fechado sobre si mesmo. Deve ser claro para todos os habitantes que as movimentações no Bairro são sempre controladas e coordenadas pelo departamento de vigilância, mas também devemos ter em conta que podemos tirar partido desta localização para incentivar a visita de cada vez mais gente, seja através de novas actividades ou através de novos produtos. Aumentando a afluência de pessoas, aumentaremos o volume de negócios, aumentaremos o nosso lucro e a nossa qualidade de vida. Vamos abrir bares, restaurantes, lojas de artigos de surf e de desportos radicais. Vamos promover o nosso Bairro.’
Na sequência deste apelo, algumas pessoas reuniram-se informalmente – uma delas foi o Pedro – para estabelecer um plano de comunicação e de renovação da imagem do Aleixo. Com a devida aprovação da Comissão criou-se um slogan de suporte para diversos materiais que serão distribuídos massivamente: ‘TODOS AO ALEIXO – UM NOVO BAIRRO, NOVAS OPORTUNIDADES!’ será a frase que em breve se lerá em t-shirts, cartazes, out-doors, autocolantes, esferográficas, canecas de cerveja… Também está a ser planeada uma campanha nas rádios locais e em alguns canais de televisão por cabo.
O Pedro sugeriu a criação de um sítio na internet. Deu como exemplo o blog criado há alguns meses e falou do sucesso que tem conseguido. Teve carta branca da Comissão para desenvolver o projecto.
Num dos últimos encontros em que falámos sobre isto, consegui convencer o Pedro a voltar a insistir com a Comissão, aproveitando o espírito de elevada auto-estima que existe actualmente no Bairro, para investir na promoção internacional associando os serviços prestados no Bairro do Aleixo com umas férias de sonho junto ao mar. Esperamos apenas a oportunidade certa.

segunda-feira, setembro 20, 2004

Nova estação

Agora é o Outono que chega ao Bairro. A frequência visível diminuiu e as noites estão mais frias. A qualquer momento vamos ter baixas. A qualquer momento, para contrariar esta tendência, vamos abrir as promoções de Outono. Começamos a vestir casacos.

sábado, setembro 18, 2004

A personagem da bicicleta

A personagem da bicicleta e de pijama voltou. Agora é mais regular. É uma espécie de sentinela a rondar o Bairro. É um informador do departamento de segurança. Observa tudo e raramente actua. Passa sempre à mesma hora, identifica-se pelas badaladas do relógio da igreja. Tem bigode e ninguém sabe como se chama.

sexta-feira, setembro 17, 2004

António.

É baixo e anda sempre com rapidez. Faz parte do grupo de frequentadores do Aleixo com mais experiência, mais velho. Os olhos verdes e brilhantes, quase que disfarçam as marcas na cara. Tem a voz rouca e discute facilmente. Arruma carros junto ao Alicantina. Encontro-o por lá muitas vezes. Desde há algumas semanas começou a aparecer mais vezes no Aleixo. Fala sozinho enquanto caminha, apressado, em direcção à Pasteleira.

quinta-feira, setembro 16, 2004

Joaquim II.

Encontrei-o outra vez. Durante a tarde, na Baixa. Estava sentado no passeio de olhos fixos no chão. Uma caneca branca, de metal, com algumas moedas. Durante as noites que passa na bomba de gasolina costuma sorrir.

quarta-feira, setembro 15, 2004

O Bairro do Aleixo em três minutos e meio

Sexta-feira, fim da tarde. O Bairro do Aleixo parece uma sessão radiofónica onde cada acção demora três minutos e trinta e tal segundos. É seguida de um pequeno momento publicitário e voltam novamente três minutos e trinta e tal segundos: o tempo necessário para se entrar no Bairro, subir ao primeiro andar da primeira torre, pagar, receber e sair mais ou menos a correr. É cansativo, mas tem que ser porque os interlúdios comerciais não podem esperar.

segunda-feira, setembro 13, 2004

Uma nova localização para o Bairro do Aleixo

A Comissão de Moradores, Traficantes, Consumidores e Outros Negociantes do Bairro do Aleixo (CMTCONBA), está a trabalhar na possibilidade de transplantar o Bairro - desde a Escola Primária e do Campo de Jogos até às torres de habitação - para junto do porto de PC.
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O porto de PC é um pequeno cais marítimo, com uma discreta afluência e uma ligeira, mas saudável, actividade piscatória. Situado entre dois penhascos que o resguardam das intempéries e dos olhares curiosos, tem ainda a vantagem de estar acessível por via terrestre apenas por uma estrada de fácil vigilância, sendo possível impedir visitas de autoridades não convidadas.
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O objectivo desta nova localização é, em primeiro lugar, aproximar o centro receptor de mercadorias do centro distribuidor: na actual situação perde-se muito tempo com as viagens de e para o Bairro. Em segundo lugar pretende-se uma melhoria nas condições de segurança do Bairro, que nem sempre são as melhores: o Bairro está demasiado exposto ao exterior, existem fugas de informação e vários autos judiciais em adiantado processo de investigação. Pretendemos fugir antes que nos apanhem.
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Por outro lado, é também desejo da Comissão que esta deslocalização favoreça uma melhoria das condições de vida da população.
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Neste momento já está concluída a proposta de transladação do Bairro. Tendo participado activamente na elaboração do projecto, possuo um conhecimento bastante preciso dos seus conteúdos em toda a sua extensão.
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Não querendo aprofundar muito as secções mais teóricas do projecto, não posso deixar de referir os contributos que alguns reconhecidos sociólogos, políticos, economistas e juristas nos deram. Nomeadamente através de análises e estudos avassaladores sobre o impacto sociológico do Bairro do Aleixo quando implantado noutra cidade, sobre a evolução económica do Bairro enquanto sistema fechado de trocas comerciais ilegais, sobre a importância do tráfico marítimo na economia paralela ou ainda sobre a importância dos portos ilegais para a definição de uma política do mar.
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Os aspectos mais práticos deste processo consistem num plano de transposição de todos os componentes do Bairro para a margem do porto de PC. A saber:
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As torres de habitação: ficarão instaladas no penhasco norte do porto, voltadas para sul e poente, num terreno com cerca de dez hectares adquirido para o efeito com o apoio de um banco especializado em créditos imobiliários de risco moderado;
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A escola, o jardim de infância e o campo de jogos: estes equipamentos ficarão instalados nos espaços verdes que irão ser criados no meio das torres. As crianças e os jovens poderão brincar saudavelmente e com segurança, enquanto aprendem, por observação, as movimentações globais do Bairro;
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O centro de dia: o espaço de ocupação de tempos livres da terceira idade do Bairro vai ocupar uma casa construída junto ao campo de jogos. Será construído um jardim com percursos pedonais para passeios a sós ou acompanhados. Pretende-se que os residentes idosos descansem e não tenham quaisquer preocupações com os negócios;
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A igreja: apesar do Bairro actualmente não ter uma igreja para seu uso exclusivo, a Comissão achou por bem criar uma. Uma vez que o Bairro vai ser mudado todo de uma vez, com todos os seus habitantes, não seria justo pedir à igreja e ao pároco local que acolhesse tantas ovelhas tresmalhadas de uma só vez. Será contratado um novo sacerdote para presidir aos momentos confessionais e às celebrações dominicais;
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O centro de recepção de mercadorias: na margem norte do porto irá nascer um centro de desembarque de barcos de pequeno porte que estará equipado com todo o material necessário ao armazenamento e transporte das matérias primas até ao centro de transformação;
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O centro de transformação e distribuição: para não alterarmos a disposição já existente, este centro vai ficar instalado no primeiro andar da primeira torre. O laboratório de divisão e retalho ficará integrado neste departamento. Uma vez que os actuais métodos utilizados por esta secção estão a ficar obsoletos e têm já dificuldades em responder às necessidades, aproveitaremos esta mudança para uma completa renovação e modernização de métodos, processos e equipamentos. Uma das novidades é a criação de um departamento de controlo de qualidade, segundo os mais altos padrões europeus do sector;
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O departamento de vigilância e informação: este sector apesar de eficaz, está pouco activo e desorganizado no actual Bairro do Aleixo. Vai ficar instalado no penhasco sul do porto. Para maior rentabilidade e eficácia de todos os processos vai ser necessário um esforço financeiro suplementar para a informatização deste departamento: vão ser adquiridos meios de comunicação novos e infalíveis, vão ser estabelecidos acordos com alguns satélites europeus, vão ser criadas equipas de segurança interna e de espionagem externa, vai ser criado um sub-departamento de informação e propaganda, que terá também a responsabilidade da contra-informação;
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Outros espaços e equipamentos: no referido projecto faz-se ainda referência à necessidade de a médio prazo ser instalado um health club e um centro de recuperação de toxicodependentes, porque não faz sentido que ‘depois de crescerem e de quase morrerem aqui, os nossos habitantes tenham que mudar de bairro ou de cidade para serem tratados, quando querem deixar o vício.’ Cito de memória a intervenção de um destacado membro da Comissão. Faz-se também menção à eventual existência de negócios paralelos e legais, tais como actividades ligadas às pescas, ao comércio de alimentos e de outros bens necessários, ao lazer e afins.
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Este projecto já foi apresentado à população: fizeram-se reuniões de esclarecimento, a Comissão respondeu às questões levantadas e discutiram-se seriamente todos os aspectos. Nos próximos dias realizar-se-á um referendo para ratificação da proposta.

sábado, setembro 11, 2004

António Variações

Quando a cabeça...
Quando a cabeça não tem juízo. Quando te esforças mais do que é preciso, o corpo é que paga. O corpo é que paga. Deixa-o pagar, deixa-o pagar – se tu estás a gostar.
Quando a cabeça não se liberta das frustrações e inibições, de toda essa força que te aperta, o corpo é que sofre as privações, mutilações.
Quando a cabeça está convencida de que ela é ela e é uma maravilha, o corpo é que sofre, o corpo é que sofre. Deixa-o sofrer, deixa-o sofrer – se isso te dá prazer.
Quando a cabeça está nessa confusão e já sem saber o que deves fazer, ingeres tudo o que te vem à mão, o corpo é que fica – fica a cair sem resistir.
Quando a cabeça rola para o abismo, tu não controlas esse nervosismo, a unha é que paga. A unha é que paga. Não paras de roer, nem que esteja a doer.
Quando a cabeça não tem juízo e tu consomes mais do que é preciso o corpo é que paga. O corpo é que paga. Deixa-o pagar, deixa-o pagar – se tu estás a gostar.
Deixa-o sofrer, deixa-o sofrer – se isso te dá prazer.
Deixa-o cantar, deixa-o cantar – se tu estás a gostar.
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[O Corpo é que Paga, António Variações]
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NOTA: O António Variações não tem, nem teve, qualquer relação com o Bairro do Aleixo!

quarta-feira, setembro 08, 2004

Octávio II.

O cheiro piorou e já não diz bom dia a ninguém. Caminha com passos inseguros. Com a mão esquerda segura uma sandes de queijo e aperta o braço. Tem dores, muitas dores. Na mão direita leva um saco de plástico cheio de roupa suja. Nota-se que o Verão está a acabar no Bairro do Aleixo.

segunda-feira, setembro 06, 2004

Miguel.

É um miúdo do Bairro, tem doze anos e um olhar esperto. Gosta de zaragatas. Falta à escola regularmente. O irmão mais velho está desempregado. A mãe está demasiado cansada para lhe prestar atenção, passa os dias a chorar num quarto escuro. O passatempo preferido dele é cravar cigarros na rua. Não fuma, mas vende os cigarros por dez cêntimos aos clientes do Bairro. Há quem lhe pergunte pela família, pelo pai. Ele responde: ‘volta para a semana, foi trabalhar para Trás-os-Montes.‘

sábado, setembro 04, 2004

Xavier II.

O blog foi induzido em erro. A mãe do Xavier está viva. Encontrou um amigo da sua idade. Abandonou o filho e o cão. Passeia abraçada ao seu novo amante pela baixa da cidade. Parece mais alegre.

quinta-feira, setembro 02, 2004

A reunião de família

Já há muito que se falava numa reunião com os herdeiros das principais casas traficantes do Bairro do Aleixo. Aconteceu finalmente.
Reuniram-se discretamente num restaurante nos arredores da cidade. A convocatória foi feita por um processo de boca a orelha, com confirmação por escrito. Apenas duas linhas, a indicar o lugar e a hora, nuns papeis pequenos deixados quase por acaso, debaixo dos copos de água no café ao lado do Centro de Saúde.
Os convocados, na sua maioria mulheres entre os 25 e os 35 anos e com uma visão feroz e mercantilista dos negócios do Bairro, não ultrapassavam a dúzia e chegaram todos à hora marcada. A ansiedade em pôr as novidades em dia, em falar das cotações das mercadorias e das últimas transacções, fez com que os pedidos fossem demorados. Felizmente alguém se antecipou e pediu vinho.
Antes do início da ordem de trabalhos foram apresentadas amostras dos melhores produtos do mês, alguns dos quais não chegaram sequer a ser comercializados.
OS DOIS PONTOS DA ORDEM DE TRABALHOS
Em primeiro lugar fez-se o ponto da situação actual do comércio no Bairro, com algumas comunicações muito bem fundamentadas e documentadas sobre as actuais condições de importação, sobre a qualidade dos produtos, sobre a flutuação de clientela e a taxa de permanência. Algumas destas comunicações suscitaram comentários e reacções, mas nenhuma digna de nota.
Passou-se em seguida para a discussão sobre as linhas de acção para o futuro. Este ponto, mais polémico, dividiu os presentes, permitiu tirar algumas conclusões, adiou decisões e não gerou consensos.
Uma jovem herdeira falou da renovação das gerações, defendeu que se deve, o mais rapidamente possível e de uma forma inequivocamente eficaz, assumir o comando de todos os sectores do Bairro. ‘Estamos a perder terreno. Os nossos pais e tios já não conseguem dar resposta às necessidades. São lentos e conservadores. Temos que melhorar a nossa capacidade de produção e, principalmente, de distribuição.’ Esta conclusão, no final de um discurso quase improvisado, inflamou a plateia e anunciou uma grande sequência de comunicações.
Tomou a palavra um rapaz de óculos grossos, vestido com uma camisa azul clara às riscas. Numa voz pausada e clara, apresentou o seu ponto de vista sobre a qualidade dos estupefacientes. Afirmou que ‘o sucesso do Bairro depende apenas da qualidade dos produtos oferecidos. Temos conhecimentos para construir os melhores laboratórios da cidade e temos os melhores investigadores do norte do país. Perderemos rapidamente a nossa posição no mercado sem ofertas de qualidade.’ Nova chuva de aplausos e algumas manifestações de desagrado. ‘Isso pode custar mais dinheiro do que o que parece!’, sussurrou alguém.
O terceiro orador da noite, uma mulher com cerca de trinta anos, educação britânica e voz sensual, fez silenciar a plateia quando começou por dizer ‘devemos, sem perder tempo com escrúpulos ou moralidades, pressionar de todas as formas o nosso governo no sentido de lhes explicar muito bem a importância e o peso do nosso sector. Temos que provar que, por cada grama de pó aqui vendida, o rendimento do país melhora. Temos que demonstrar que não vale a pena combater o narcotráfico porque, com isso, só perdem votos e mandatos. Usaremos todas as nossas armas para chantagear o poder político e transformá-los em marionetas nas nossas mãos.’ Fez um silêncio mais prolongado e, apesar dos sorrisos de aprovação da maioria da plateia, ninguém, absolutamente ninguém, quebrou o silêncio. Continuou sem alterar o tom de voz: ‘sim, falo em usarmos as provas que temos contra políticos e governantes para obter benefícios. Quantos de vocês fornecem os nossos governantes? Quantos de vocês receberam já cheques, de somas avultadas, assinados por pessoas que estão no poder?’ Terminou a intervenção agradecendo a atenção de todos e regressou ao seu lugar.
Esta opinião suscitou algumas respostas, ora manifestando compreensão ora algumas reticências em relação a procedimentos deste tipo. ‘Estaríamos a abrir precedentes graves no código de conduta dos traficantes’, disse alguém. Ouviu-se de imediato outra voz: ‘No Bairro ninguém tem nome próprio, ninguém tem personalidade para além da quantidade e do valor da compra.’
Uma das últimas intervenções retomou a questão da qualidade dos produtos, não como uma forma de ultrapassar a concorrência, mas como uma forma de aumentar a taxa de permanência e de fidelização dos clientes. ‘Não podemos continuar a perder clientes por morte prematura. Fornecendo bons produtos, garantiremos maior qualidade de vida e maior longevidade aos nossos clientes, e, consequentemente, mais lucro.’ Alguém concordou concluindo a fórmula matemática: ‘É preferível vender bom material durante trinta anos à mesma pessoa, mesmo ganhando menos vinte por cento em cada transacção, do que ter um cliente só por dez anos. Não é?'
A madrugada já ia alta. Começaram a tocar telefones e algumas pessoas começaram a sair. Para terminar o encontro, um dos organizadores do jantar, resumiu os pontos abordados e concluiu que ‘alguns dos assuntos aqui falados são recorrentes nas reuniões da Comissão – como a promoção e o melhoramento dos métodos de distribuição – enquanto que outros são manifestamente inovadores e merecem a nossa melhor atenção. Devemos continuar com os investimentos na investigação e procurar conclusões. Unidos, poderemos em pouco tempo elaborar um documento e fazê-lo aprovar pela Comissão. Poderemos então avançar com medidas efectivas. Os nossos pais, os nossos tios e padrinhos estão a envelhecer – alguns estão mesmo presos. Está na hora de os substituirmos e avançarmos de cabeça levantada para a construção de um novo Bairro. Um Bairro para o futuro.’
Uma ovação final deu por terminada a reunião e todos foram unânimes em garantir o sucesso do encontro.