No Bairro do Aleixo

quarta-feira, maio 26, 2004

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No Bairro as pessoas aparecem e desaparecem rapidamente. Às vezes voltam, quase sempre diferentes: o tempo reflecte-se no corpo todo, na roupa, na voz, nos olhar, na forma de caminhar.

terça-feira, maio 25, 2004

Sofia.

Começou a vir ao Bairro em Novembro do ano passado. Não tem uma perna. Apoia-se como pode em duas muletas. Não é fácil ignorá-la. É muito nova, adolescente, bonita. Foi bonita. Tem os lábios feridos, a cara marcada por cicatrizes e as mãos calejadas pelas muletas. Passa os dias nos semáforos junto ao Centro de Saúde a pedir moedas: espera pelo sinal vermelho, percorre um a um os carros que querem virar à esquerda, faz contas ao resultado e recomeça. O seu ar jovem comove as pessoas. A perna amputada, reflexo de um desconhecido conjunto de infecções causadas por seringas e substâncias indefinidas, provoca receio. As pessoas que nada têm a ver com os negócios do Bairro gostam dela. Oferecem-lhe coisas, comida quase sempre, e falam com ela quando se cruzam. Já a vi sorrir nessas ocasiões.

quinta-feira, maio 20, 2004

As noites

Em toda a Rua das Condominhas existem cerca de dez prédios, razoavelmente protegidos do vento e do frio, onde pode ser confortável passar a noite. Na maior parte deles os moradores não deixam ninguém lá ficar, chamam a policia, ficam agressivos e expulsam à força quem se sentar no patamar de entrada ou nas escadas. Nos edifícios maiores existem seguranças. Nas torres do Bairro é impossível adormecer sem que aconteça alguma coisa má. Agora é quase Verão e, apesar de tudo, é possível escolher lugares menos protegidos e mais abertos para dormir algumas horas. No Inverno devem ser difíceis as noites.

terça-feira, maio 18, 2004

Isabel.

É uma presença recente na rua. Terá também perto de trinta anos. Muda de roupa várias vezes na mesma semana. O cabelo é castanho e esticado, cai pelos ombros com alguma agressividade. Ocasionalmente dorme na rua, na entrada de algum prédio, protegida do vento. Com os olhos claros bem abertos quase sorri quando lhe digo ‘boa noite’. Nunca me respondeu, nunca lhe ouvi a voz. Traz sempre uma pequena mochila às costas e caminha com passos seguros e rápidos, como se afirmasse que está de passagem e que pretende não voltar. Tem voltado várias vezes.

sábado, maio 15, 2004

João.

Pode ser visto quase diariamente na rua. Tem cerca de trinta anos, uma cabeleira loira e barba grande, escurecida pela sujidade. Há duas horas atrás espetou uma seringa no braço e ficou com o olhar frio preso no reflexo do seu corpo numa porta de vidro. Olhei para ele e disse ‘boa noite’. Pediu-me desculpa por estar ali ao mesmo tempo que, com um gesto firme, pressionava a seringa e deixava cair o braço. Sentou-se num degrau com a cabeça entre as mãos e o seu corpo estremeceu. Pareceu sorrir. 'Parece que tenho uma faca a rasgar os músculos.', disse. Reparei nos seus braços, nas mãos grossas e no olhar mais ou menos distante, mais ou menos azul, vago, como se nada existisse a mais de um metro de distância. Perguntei se aquilo era bom. ‘O quê? Esta droga?’ ‘Não, a sensação!’ ‘Uma dose por dia é obrigação, a segunda é prazer. A segunda é sempre boa.’ Não falámos mais depois disto.
Vi-o pela primeira vez na Baixa a arrumar carros. Não sabia que era do Bairro. Talvez não more aqui e venha cá há muito pouco tempo. ‘Mais tarde ou mais cedo todos passam pelo Aleixo’, ouvi um dia num café. O Bairro do Aleixo é inevitável.

quinta-feira, maio 13, 2004

Filipe.

Recordo-o como alguém próximo apesar de o ter encontrado apenas uma vez encostado ao muro da igreja. Veio a correr na minha direcção quando saí do carro. ‘Doutor, ‘tou todo fodido, falta-me um conto para comprar uma quarteira, não me desenrasca?’ Não é normal pedirem-me para desenrascar ‘contos para quarteiras’. Consegui meter a mão no bolso e estendi-lhe, quase a pedir desculpa, todas as moedas que tinha. Não era bem um conto, mas resolvia o problema por agora. ‘Muito obrigado, carago. ‘Tou mesmo fodido e mais vale um tipo ser sincero. Não lhe ia dizer que tenho família para alimentar. Não tenho. Mas ‘tou todo fodido, preciso mesmo de uma quarteira... obrigado doutor!... Se precisar de alguma coisa chame por mim, tou sempre por aqui. Pó, base, arranjo tudo... Há ali um tipo em Gaia que tem um pó, doutor!, é do melhorio. Se quiser chame por mim. Obrigado, doutor!’

sexta-feira, maio 07, 2004

A hesitação

Seria agora oportuno falar de pessoas, de nomes e de corpos que frequentam o Bairro contribuindo para o desenvolvimento dos negócios.
No Bairro do Aleixo qualquer pessoa tem um nome ou uma história e é frequente estas histórias superarem as ficções que a partir delas se podem criar. Por isso hesito!
Falar de pessoas - de nomes próprios - presentes na minha rua é difícil. Corro o risco de ser seduzido pela realidade das histórias e pela materialidade dos corpos e, com isso, fracassar na minha pesquisa.
Os nomes e as pessoas estão sempre demasiado próximos, tornam-nos sensíveis e anulam a distância que deve salvaguardar uma investigação séria, isenta e responsável sobre estas matérias.
Por isso volto a hesitar.

quarta-feira, maio 05, 2004

O regresso da América do Sul

Conforme disse no último post, cá estou eu de regresso ao Bairro depois de uma estadia na América do Sul: uma estadia em lazer e em trabalho de investigação. Para não levantar suspeitas organizei a viagem não aos países produtores mas a um país exportador, intermediário portanto. Fiquei instalado na Argentina, entre Buenos Aires e Ushuaia.
Deixei à providência a parte desta viagem dedicada ao lazer e, depois de definir um plano de trabalho, tratei de estabelecer alguns contactos locais – sempre com a preciosa ajuda das telecomunicações de banda larga – para não perder muito tempo nos primeiros dias da minha estadia. Estes contactos revelaram-se de uma utilidade sem preço.
A viagem enquanto viagem seria um assunto muito fértil para um outro blog, chamado talvez ‘uma viagem na Argentina’ ou ‘a minha estadia na terra do Tango’ ou ainda ‘o dia em que Diego Maradona foi internado pela quinta vez’. Por agora vou ficar pelos factos relevantes para a vida do Bairro.
É sabido que a melhor forma de estudar o mercado de estupefacientes é através de um processo de aproximação, mais ou menos discreto, também conhecido por ‘vai lá e compra!’
Obviamente que um cidadão estrangeiro não pode fazer isso e tem que recorrer a estratégias mais recatadas. Daí a importância dos contactos pré-estabelecidos. Informei-me devidamente sobre os processos de importação, sobre as matérias importadas e sobre a situação das empresas importadoras e sobre o percurso da matéria prima até à exportação para os países europeus com quem existem acordos de cooperação.
Conforme fui recolhendo informações, principalmente sobre os processos de circulação interna das matérias primas, senti-me mais à vontade para me aproximar dos indivíduos que actuam directamente nos subúrbios da cidade. Esta aproximação não foi isenta de problemas nem de sobressaltos. Não vou falar de mais pormenores para salvaguardar a minha privacidade e o eventual rendimento que possa vir a ter com a publicação de TODA A VERDADE!
O importante e aquilo que interessa saber é que a cocaína entra na Argentina já transformada em pó e com um grau de pureza perto dos 100%. Esta mercadoria é descarregada, entre outros locais, nos subúrbios perigosos e assassinos de Buenos Aires. Depois existem dois caminhos possíveis.
O primeiro: a droga é transformada através de um processo conhecido por ‘traçar’, ou seja, misturar à substância original uma porção de outra substância qualquer que possua a mesma textura, que não afecte a coloração da original e que não seja demasiado perigosa para o consumidor. Esta mistura é feita na proporção desejada de forma a obter pelo menos três vezes mais pó do que o que se tinha originalmente. Depois de devidamente multiplicada é introduzida nos mercados vizinhos subdividida em múltiplos de cinco gramas ou em unidades. O preço de mercado varia conforme a zona onde se adquire e conforme o perigo de entrar ou sair nessa zona. Digamos que quanto mais perigoso for, mais barato fica e menos probabilidades temos de gozar a compra. O preço pode variar entre os vinte e os setenta pesos por grama, ou seja entre cinco e vinte euros!
O segundo: a pureza da cocaína é mantida quase intocável e é exportada para os países europeus através de barcos de mercadorias, aviões militares ou civis, em cruzeiros de luxo, disfarçada de filmes pornográficos, dentro de animais exóticos, no estômago de pessoas ou mesmo, se em pequenas quantidades, pelo correio normal. Estes processos são mais ou menos conhecidos, mais ou menos detectáveis. O seu grau de eficácia é o necessário para fornecer alguns milhares de consumidores entre Lisboa e Moscovo.
Uma vez descarregada na Europa, a mercadoria é sujeita a alguns testes de controlo de qualidade que vão ditar o prazo e o valor da transferência bancária para uma conta sem titular conhecido. A mercadoria é introduzido depois em laboratórios especializados onde vai ser ‘traçada’, segundo o processo já descrito, e dividida de acordo com o mapa de encomendas. A parte mais cansativa está feita e a partir daqui entra-se numa sequência de acontecimentos mais ou menos rápidos que provocam a proliferação de pequenas doses pelos países, pelas cidades, pelos bairros e pelas casas dos cidadãos europeus.
O Bairro do Aleixo entra em cena aqui. Recebe algumas destas pequenas doses. Pequenas aqui significa embalagens de quinhentas gramas a cinco quilos. Como noutros bairros, ou noutros centros de comércio, procede-se mais uma vez ao processo de multiplicação da matéria e de divisão do resultado em doses ainda mais pequenas – uma a cinco gramas. Esta multiplicação é tão maior quanto mais necessidade houver em facturar e menos preocupação com a satisfação do cliente. Depois é vendida ao consumidor final ou a outros pequenos e ocasionais intermediários.
Como é fácil perceber, cada uma destas etapas corresponde a uma diminuição da qualidade e a um aumento do preço. Para terem uma ideia mais clara: o que em Buenos Aires, depois da importação e de ter passado por três fases de intermediação, custa entre cinco e vinte euros e tem uma qualidade a que poderíamos chamar, sem reservas, de muito boa, custa na Europa entre quarenta e sessenta euros e a qualidade é, sem pudor, fraca. Não podemos esquecer que à saída dos países produtores um quilo de cocaína pura custa cerca de dez euros.
Ninguém duvida que este é um dos negócios mais rentáveis do globo e devemos estar orgulhosos pelo Bairro do Aleixo – o nosso bairro, O Bairro – fazer parte desta harmonia universal.