No Bairro do Aleixo

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Rui III.

É um homem de fé. Sempre que passa à porta da igreja, pára e benze-se. Queria ajoelhar-se, mas o equilíbrio numa perna só não o permite. Limita-se a murmurar uma oração que lhe ficou dos tempos da catequese. Entretanto esqueceu algumas palavras e o sentido, mas sente-se melhor quando a repete.
Desfez a barba há dois dias e mostra um rosto branco, magro, sem marcas e com a pele fina. Está irreconhecível. Continua, sempre que possível, montado na bicicleta.

domingo, dezembro 26, 2004

As canções do sítio

Para recapitular:
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- O corpo é que paga, António Variações
- Erva daninha a alastrar, António Variações
- I’m getting sentimental over you, Jimmy Scott
- Cry (if you want to), Holly Cole
- Desaperta-me o coração, autor desconhecido

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Natal, quase Natal

As torres do Aleixo estão com iluminações de Natal e por todo o Bairro a solidariedade parece finalmente existir. Mais do que nunca partilham-se coisas: pratas, seringas, colheres, pequenos sacos lacrados, cigarros e caixas de cartão que substituem uma cama. Até bicicletas são partilhadas. Ou muletas, porque o número de mutilados parece ter aumentado com o frio.
Alguns moradores, numa atitude natalícia radical, decidiram mesmo arrancar as janelas de suas casas para deixarem entrar directamente o espírito da paz, vindo dos lados do rio e frequentemente acompanhado de um frio de rachar que faz chorar o menino Jesus.

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Jesus.

Nasceu há quinze dias. É filho da Teresa e de um vizinho que preferiu manter o anonimato. Afinal a Teresa não estava gorda, estava grávida e quando se soube disso houve grande alarido no décimo andar da torre dois. Partiram-se alguns pratos e arrastaram-se algumas cadeiras. Tudo acabou em paz porque não havia tempo para discussões e já era demasiado tarde para desmanchos. Aconteceu. Jesus nasceu já em época de festas e deram-lhe um nome a condizer.
Num final de tarde, há alguns dias atrás, bateram à porta do décimo andar. A tia do Jesus abriu a porta e deixou entrar o anónimo pai da criança, que não sendo santo nem tendo percebido a alegria de ter uma criança nesta época, desatou a partir alguns elementos de mobiliário ainda intactos. A criança foi cautelosamente protegida pela tia enquanto num golpe de euforia mais arrebatada se partiam duas das três janelas com uma cadeira de cozinha, daquelas com assento em fórmica branca.
Caíram alguns vidros nas traseiras do prédio, onde uns miúdos davam chutos numa bola e dois adultos davam chutos nos braços.
A tempestade passou e Jesus chora todas as noites. Ninguém sabe se são pesadelos, se é de não saber que é Natal ou se é do frio que vem lá de fora.

domingo, dezembro 19, 2004

Festa de Inverno

Uma festa para celebrar o Inverno, o frio, os excessos e as músicas do Aleixo. Com a presença dos nossos mais importantes clientes.
A CMTCONBA decretou dois dias de folga: sem compras, sem vendas, sem movimentações.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Pedro IV.

Foi comprar discos depois de uma conversa com um amigo do Tozé ‘Raquetas’, o Nando. Falou-lhe do único disco que tem, um cd velho do Jimmy Scott, que veio dentro de um leitor portátil oferecido. Entusiasmou-se com as referências estrangeiras do Nando e fez uma visita a uma loja de discos em Santa Catarina.
Deu uma volta pelas estantes e decidiu comprar o oposto do que lhe tinha sido recomendado. Sem paciência para ouvir primeiro comprou vários discos pela capa. Da mesma secção do Jimmy Scott. Escolheu capas feias com mulheres bonitas.
Ouviu-os com atenção quando chegou a casa. Gastou os últimos euros em garrafas de vinho tinto. Assou castanhas e ouviu de novo. Repetiu a Holy Cole, repetiu o charro. ‘I won’t make fun of you, I won’t tell anyone, I won’t analyze what you do or should have done’. Repetiu a garrafa de vinho. ‘I won’t advise you to go and have fun, you can cry if you want to.’
Não saiu para o passeio nocturno, não visitou ninguém. Repetiu-se e antes de adormecer ouviu baixinho.
‘I will just be here if you want me to be near you.’
O Pedro é um rapaz repetido e gosta de repetições.

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Jim louco por ti.

Existe e não existe. É como se fosse uma homenagem à ficção breve portuguesa. Boa ou má. Tem o cabelo branco pelos ombros, bastante seboso. Passa os dias entre um cerveja n’ As Três Irmãs, uma conversa nas Varandas da Foz e uma sueca no Café Caetano. Não se mistura nos negócios do Bairro, dizem.
Olha fixamente para tudo o que move e raramente reage quando lhe dirigem a palavra. Quando fala usa uma voz grave, arranhada, e solta um hálito a tabaco velho, cerveja e bagaço. Aliás, todo ele está coberto por uma nuvem de odores que reflectem o exotismo de todos os cafés do Bairro e arredores. Um verdadeiro catálogo de marcas de bagaço, vinho barato, cigarros e cigarrilhas.
Gosta de cantar, mas esquece-se muito facilmente das letras das canções. Diz quem sabe que já foi uma das principais atracções do fado do largo do Ouro.
Há quem diga que está morto a esta hora. A todas as horas.

domingo, dezembro 12, 2004

Zé.

‘Por acaso não tem aí cinco ou dez cêntimos para o tabaco?’ Foi assim que eu ouvi a voz dele pela primeira vez. Já o conhecia de o ver a subir e a descer a rua, com uma mochila pequena às costas. Às vezes entra num café para cravar um cigarro ou uma moeda.
Tem trinta e poucos anos, a cara marcada, o cabelo ralo e os olhos pequenos. É baixo e as mãos grossas fazem gestos curiosos enquanto fala.
Desceu várias vezes a rua à procura de alguém. Ao pescoço levava um cachecol do Porto, ainda tinha a voz rouca de gritar pela vitória sobre o Once Caldas, da Colômbia. ‘Eles podem ter droga melhor, mas foram enrabados como qualquer bom europeu.’
Estava frio e era domingo. Naquela parte da rua não estacionam muitos carros e a receita às vezes é demasiado fraca. De vez em quando ouvem-se carros a apitar.
Entrou uma última vez no café para se aquecer e pedir mais um cigarro. À saída tira o cachecol, dobra-o como se fosse novo e pergunta a dois miúdos que discutem o tamanho dos atacadores das sapatilhas. ‘Olha lá: quanto é que custa um cachecol destes aí na rua? Dez, quinze euros?’
Não sei se ouviu a resposta. Desceu a rua com o cachecol na mão, decidido a trocá-lo por quinze euros.

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Júlia II.

‘Desaperta-me o coração’ é o nome de uma canção que o Jim louco por ti – é assim que gosta de ser chamado – canta quando ela passa. Ela despreza-o da mesma forma que a todos os moradores do Bairro. De vez em quando vai tomar um café ou comprar roupa interior na carrinha-loja parada na curva aos sábados à tarde. O Jim é velho, demasiado velho para ela e nunca lhe acenou com uma nota de cinquenta euros. Tem o cabelo branco comprido, muito oleoso, e a cara marcada pelas bexigas. Gosta de cantar para ela, mas esqueceu-se do resto da canção. Só consegue dizer, às vezes sussurrado, outras vezes num grito para o outro lado da rua ‘desaperta-me o coração’. Às vezes fica triste com a indiferença dela.
Nunca falou com ele, mas sabe o que se diz da paixão que ele tem por ela, pelos seus movimentos de anca e pelo seu cheiro. Normalmente ela sorri quando lhe contam histórias.
O problema do Jim é chamar-se a si próprio Jim louco por ti, cantar canções sem saber a letra e não contar histórias.

terça-feira, dezembro 07, 2004

Michele III.

Dizem que esteve fora durante algum tempo. Numa clínica. Ou que não saiu de casa nas últimas semanas. Ontem foi visto a passear um cão pela trela. Está mais alegre e mais magro. Vestia calças de ganga e uma camisola vermelha com a inscrição ‘I want crack and anal sex’.

sábado, dezembro 04, 2004

Alberto.

Para os amigos é o Berto. Trabalhava nas obras, numa construtora da Maia. A última ‘grande obra’ em que trabalhou foi a construção dos acessos ao parque de estacionamento do Jumbo. Conheceu uma amiga dos primos, que moravam no Aleixo, e começou a vir ao Bairro aos domingos à tarde. Depois começou a ficar para segunda-feira. Às vezes chegava tarde outras vezes faltava ao trabalho – a remodelação de um armazém na Rua Álvaro Castelões. Ao fim de um mês foi despedido.
Ainda tentou trabalhar numa oficina de automóveis, mas as mãos grossas não serviam para os parafusos nem para as varetas do óleo e os clientes não o queriam nas lavagens manuais.
Passou mais dias no Aleixo e trocou as pratas pelas seringas. Mudou-se definitivamente. A namorada trocou-o por um colega e também se mudou. Para o Cerco. Os primos emigraram para uma cidade espanhola: seguranças privados de um estabelecimento de entretenimento. João, o seu último amigo, morreu.
O Berto estava hoje a dormir à porta de um prédio. De um lado tinha uma estante vazia, depois um banco, onde pendurou um casaco de couro castanho. No chão, um cobertor verde estendido, e junto ao vidro uma caixa de madeira. Junto à parede colocou alguns objectos pessoais alinhados por tamanhos.

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Incursões pela Baixa

O Bairro tomou consciência de que existem transportes que facilitam a mobilidade urbana. Por momentos pomos de parte as manifestações de desagrado para apreciarmos as viagens de Metro. Saímos de casa de uns amigos em Ramalde ou – porque não? – do Viso e partimos em direcção à Baixa.
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Normalmente a mobilidade urbana está mais acessível à população mais jovem, estudantes e trabalhadores activos. No Aleixo, como sabemos, a ‘população activa’ não exerce actividades relevantes para fins estatísticos e as que existem estão muito confinadas ao primeiro andar da Torre Um. Assim, a mobilidade urbana da população do Aleixo é quase exclusiva de adolescentes com aspirações e dos adultos que decidiram divergir das orientações gerais.
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Há relativamente pouco tempo os nossos adolescentes descobriram – finalmente! – os prazeres do vandalismos urbano, metropolitano e subterrâneo. Correm pelo cais, fogem dos seguranças, gritam, sobem escadas rolantes que descem, puxam sinais de alarme, esticam carteiras, circulam sem ‘andante’, cospem no chão, insultam as velhinhas de Matosinhos e roubam o resultado de um dia no shopping. Não há segurança privada que aguente. O único problema é não haver grades para saltar, nem túneis suficientemente iluminados para pintar. ‘Os cromos da Senhora da Hora é que têm sorte. Têm umas grandes paredes.’, disse o Miguel enquanto se preparava para apanhar o trinta e cinco que o leva até ao Heroísmo, onde apanha a linha azul para mais uma tarde de emoções. Um amigo murmurou entre dentes ‘o spray não pega nos azulejos das estações...’
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E os comboios fazem paragens pequenas. Nem sequer dá para uma assinatura com classe.