No Bairro do Aleixo

sábado, outubro 30, 2004

Uma reunião de emergência

A CMTCONBA – Comissão de Moradores Traficantes Consumidores e Outros Negociantes do Bairro do Aleixo – está preocupada. Desde que se anunciou um plano camarário de vigilância do Bairro que as coisas não andam bem: acidentes estranhos acontecem; morreram três pessoas em circunstâncias pouco claras; alguns residentes foram agredidos e assaltados fora do Bairro; um grupo de adolescentes, vendedores de haxixe a retalho, caiu numa emboscada de um grupo de um bairro rival e perdeu uma zona de negócio na Baixa. Foram todos detidos, mas só os nossos foram presentes a tribunal. Os outros foram libertados depois do interrogatório. É necessário tomar medidas.
Neste contexto foi convocada uma reunião de emergência da Comissão para se discutir e aprovar um plano global de prevenção contra novos acontecimentos desagradáveis. As intervenções dos elementos da Comissão não foram longas. Estava frio na sala e toda a gente, apesar da reconhecida importância do encontro, queria decidir tudo muito depressa para regressarem a casa.
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Decidiu-se pois pela única proposta apresentada e que consistia em lançar uma campanha na imprensa acusando as autoridades de abuso de poder e de cooperação com os patrões do tráfico na zona leste da cidade. Espalhar que só por isso é que se lembraram de intervir desta maneira muito pouco elegante no Bairro. ‘Onde é que já se viu tirarem da cama pessoas que dormem, só porque estão a fazer uma rusga?’
Na verdade toda a gente sabe que a polícia e as autoridades municipais têm uma participação nas vendas de estupefacientes nos bairros da zona oriental. As operações noticiadas para aqueles bairros foram pura ficção. Pretenderam apenas desviar as atenções para agora se concentrarem no Aleixo.
E o pior não são as rusgas ou o policiamento indiscriminado de cidadãos inocentes, o pior são as atitudes mascaradas contra os habitantes. São os cortes propositados de energia eléctrica e de água que a Câmara Municipal faz, são os buracos encomendados nas ruas e nos passeios para ver se provocam acidentes, são as carreiras dos autocarros sempre fora de tempo, ‘enfim, um ror de males, é o que é!’, concluiu o orador.
O plano de acção incluía um segundo ponto onde as ameaças directas aos membros da autarquia estavam como uma prioridade incontornável. ‘Bem, algumas ameaças e outros actos a sério’. Sugeriu-se, entre outras coisas, armadilhar um dos carros do presidente da câmara com vários quilos de heroína e fazê-lo ter um pequeno acidente, espalhando a mercadoria em plena Avenida dos Aliados; sugeriu-se criar uma corrente de tráfico nos corredores da Câmara – ou mesmo do Parlamento – como forma de protesto, sugeriu-se fazer cair um balão de ar na Rotunda da Boavista com a inscrição A BÓFIA NÃO MANDA AQUI!, sugeriu-se implicar familiares de vereadores nas acções comerciais do Bairro. ‘Sei que alguns de nós já abordaram estes assuntos, nomeadamente numa reunião de herdeiros, mas desde então as coisas pioraram e nada foi feito. Não podemos perder mais tempo!’
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Três dos presentes encarregaram-se de apresentar um calendário para a implementação destas medidas e respectivo orçamento.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Brocas.

Não é criminoso. Cresceu longe daqui, num bairro doutra cidade. Por necessidade profissional e exigências afectivas mudou-se para esta zona do Porto há dez anos. Era um jovem de sucesso e desenvolveu uma intensa vida social à volta e dentro do Aleixo. Para tal contribuíram pequenas acções de tráfico, um ou outro favor para desenrascar amigos em apuros e um ajuste de contas com um tipo da Biquinha que lhe valeu uma cicatriz no lábio.
Todos conheciam o seu carro vermelho de alta cilindrada, todos gostavam de saber onde ele ia aos fins-de-semana, todos queriam ser seus amigos e convidados para os mesmos after’s dos domingos de manhã. E ele gostava que assim fosse: gostava de ser admirado pelo seu carro, pelas suas amantes e pela sua atitude.
Dava sempre um toque de mistério a tudo o que fazia. Aos domingos à tarde sentava-se no café, jornal aberto e fino na mesa, a conversar distraidamente com alguém. Às vezes deixava cair um segredo, um nome de um lugar desconhecido, fazia alguns telefonemas com poucas palavras e calava-se quando lhe faziam perguntas.
Foi despedido recentemente, depois de ter sido acusado de assédio sexual e de comportamento violento por alguns colegas de trabalho. Já tem mais de trinta anos e a força de vontade não é a mesma. O Bairro do Aleixo também está diferente: há mais pessoas de fora a circularem por aqui; muitos dos seus amigos desapareceram, morreram, mudaram-se; os habitantes mais antigos estão tristes e já não sorriem como antigamente; ele próprio já não consegue suscitar curiosidade nem admiração; há prédios a crescer à volta do Bairro; fala-se em demolições e o Aleixo anda deprimido. O Brocas anda deprimido.

terça-feira, outubro 26, 2004

Vinagre.

‘Binagre, é assim que me chamam, perguntem por mim se precisarem de alguma coisa.’ Dez minutos antes observava-nos ao longe. Correu para nós com um aviso ‘Desculpem lá mas a malta aqui não curte chapas novas e as vossas chapas não são de cá. Estão à procura de alguém?’ Mostrei-lhe uma fotografia. ‘Conheço perfeitamente, está cá todos os dias. Vi-a aí há coisa de uma hora. Tem um carro azul, uma carrinha, não é?’ Estava nervoso, com o olhar tenso e curioso. Numa das mãos fazia saltar meia dúzia de moedas, a outra guardava-a no bolso do casaco, quieta. ‘Se quiserem mesmo encontrá-la, lá para as sete ela volta cá, quando o Pirolito abrir a loja. Tás a ver?’ Durante as tardes o Bairro está mais calmo, algumas pessoas sentadas, dois carros em vigília, pessoas a caminhar de um lado para o outro. As ‘lojas’ estão fechadas e só abrem ao fim da tarde. Entretanto fazem-se negócios paralelos com o que se consegue arranjar.
Numa das entradas do Bairro uma carrinha aberta vende meias e lingerie. Uma mulher morena fala alto para o outro lado da rua. Um tipo magro sai a correr de uma das torres. ‘Foda-se, foda-se. Esta merda não pode ser assim!’ Agora escurece mais cedo no Bairro e na cidade. Os putos deixam de jogar à bola, querem chegar a casa depressa, está frio.
‘Sim, Binagre. É mesmo Binagre.’ Insistiu no nome. ‘Desculpem lá essa cena das chapas. É maneira de dizer.’

sábado, outubro 23, 2004

Vozes no Aleixo

É fundamental saber ouvir o Bairro. Do recém-nascido – e ainda nascem bebés no Aleixo! – ao reformado, toda a gente tem voz.
À noite, quando a classe trabalhadora descansa e depois do grande comércio fechar as portas, ficam a pairar murmúrios entre as torres. Alguns dizem que são espíritos; outros dizem que são sombras, conhecedoras do Bairro, à procura de objectos perdidos e acontecimentos inesperados; dizem que às vezes são cenas violentas em lugares mal iluminados, jogadores no Café Caetano a disputarem uma partida de sueca ou putos a correrem atrás duma bola no ringue, pessoas que passam tempo e que fogem ao frio no Inverno.
Depois temos as vozes das coisas, das árvores, dos carros abandonados, das seringas espalhadas pelo chão, dos muros, das pratas amarrotadas, das moedas a saltar nos bolsos. A voz da estrada, do asfalto húmido e do asfalto seco. A voz das torres, mais difícil de ouvir e de entender. É preciso estar treinado, ter bom ouvido e muita concentração.
Com tantas vozes é difícil dormir.

quinta-feira, outubro 21, 2004

João III.

O mau tempo traz sempre preocupações acrescidas para os habitantes do Bairro. Ele estava habituado aos dias de sol. Foi o melhor Verão dos últimos anos. Uma relação passageira, nenhum internamento. Não teve nenhum problema com a polícia desde Fevereiro passado e os contactos com a família eram inexistentes. Conseguia sempre, com mais ou menos dificuldade, o dinheiro necessário para cortar as ressacas. A última vez que o vi, antes de hoje, estava a conversar com a Sofia, junto à vedação do terreno baldio. Não falei com ele.
Ninguém sabe contar o que aconteceu, nem as razões que o levaram a subir até ao sino da igreja. Disseram apenas que viram alguém lá em cima ao fim da tarde, estava a escurecer.
Quando chegou o carro do INEM já era demasiado tarde. Dez segundos depois da queda já era demasiado tarde. A única coisa que se sabe com toda a certeza é que, quando o relógio deu as onze horas, ele caiu. A cabeça bateu nos degraus da escada da igreja. O corpo ficou estendido no passeio, dobrado. Não interessa muito o estado em que ficou, mas alguém citando o médico disse ‘ele partiu-se todo.’
Ainda há uma mancha vermelha que não se conseguiu tirar muito bem. Sai com o tempo e com a chuva. Foi necessário avisar a família.

quarta-feira, outubro 20, 2004

Michele II.

É visto frequentemente no Café Caetano. Todos os clientes o conhecem, mas fingem não o ver. Principalmente se estiver vestido para ir trabalhar. Quando regressou ao Bairro era tratado como um estranho, um dos de fora.
Nessa altura só se sabia de quem era filho e tinham uma vaga ideia dele há uns anos atrás: mais novo, diferente, com outro sorriso. Sabiam que tinha sido traficante mas o dado era pouco relevante para o contexto geral. Fornecia os travestis que se prostituem na Baixa em regime de monopólio. Um dia foi preso – um ano em Paços de Ferreira e mais dois anos de pena suspensa – não por tráfico, mas por ter espancado violentamente um rapaz que queria vender heroína na mesma rua que ele. Saiu da cadeia e nunca mais voltou para casa dos pais. Foi viver com o Marco, um amigo que conheceu na prisão. Deixou o negócio e começou a cantar no Sindicato. Fez um implante no peito. Deixou crescer o cabelo e pintou-o de loiro. Comprou discos da Marilyn e decorou todas as letras. Uma vez por outra consentiu em dormir com homens mais velhos. Só em hotéis. Dizia ao amigo ‘este mês gastei dinheiro a mais com o cabelo’. Pouco mais se sabia dele. As notícias vinham dispersas e os pais não falavam dele. Agora comenta-se que está doente. O seu amigo Marco morreu há um ano.

segunda-feira, outubro 18, 2004

Teresa.

Tem vinte e quatro anos e a fisionomia das mulheres velhas que passaram toda a vida atrás dum balcão. Sorri e não perde uma oportunidade para conversar, fazer perguntas, conhecer detalhes. Sabe de cor os pedidos dos clientes. O café cheio em chávena fria, o café curto pingado com uma, duas ou três gotas, o café descafeinado curto com cheirinho, o carioca cheio, o café normal em chávena escaldada com meia torrada, ou simplesmente, o café com copo de água. Quando a freguesia está mais calma, encosta-se ao balcão, vê televisão ou conversa mais prolongadamente com os clientes. Ouve suspiros, analisa sonhos, dá conselhos, partilha desgraças. É a mais nova das Três Irmãs e seria uma personagem secundária nesta história, não fosse o seu olhar atento e curioso, olhar de quem guarda informações preciosas para esta investigação. Aguardo por isso um novo encontro.

domingo, outubro 17, 2004

O futebol de passagem pelo Bairro do Aleixo

Queríamos ditar um texto em tempo real, ao ritmo dos insultos e cacetadas que se espalham nas proximidades do Estádio da Luz, mas é Domingo e o secretariado desta ficção está de folga. O ‘fê cê pê’ acabou de ganhar ao ‘esse lê bê’ e isso parece não ter caído muito bem. Dizem que houve roubos. Para além de três carteiras e um relógio desaparecido ninguém apresentou mais queixas até ao momento. No Bairro do Aleixo o jogo só foi visto nos cafés. O negócio acalmou um bocadinho durante os noventa minutos. Alguns representantes do Bairro deslocaram-se ao estádio em caravana e estão neste momento a contabilizar os hematomas: sofridos e causados. Regressam de madrugada. Amanhã teremos novidades, mas já será demasiado tarde para as relatarmos. Estaremos ocupados com outros negócios. Adiamos para uma nova oportunidade algumas histórias de bastidores, de corredores de acesso aos relvados, de hotéis e de camas em dias de estágio e de substâncias ilícitas encontradas em análises à urina.
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Para melhor localização destes factos no futuro: este importante jogo acontece na temporada a seguir ao ´fê cê pê’ ter sido campeão europeu e ao mister Mourinho ter ido para um clube estrangeiro tratar do futuro da família.

sábado, outubro 16, 2004

Lúcida.

Com uma orquídea na mão corre pela estrada abaixo em direcção ao Bairro. Corre ansiosa, como se a flor estivesse prestes a desaparecer, a transformar-se noutra coisa. Chegou com a chuva ao Bairro e talvez permaneça mais tempo. Continua a correr sem saber o que vai encontrar ao fundo da rua. Vê pessoas que passam por ela, que gritam, pessoas sem expressão. Corre. A seguir ao prédio onde se agitam vinte cabeças e um monte de braços vê um corpo deitado, cabeça inclinada, olhos vermelhos bem abertos. Um carro da emergência médica, uma botija de oxigénio. Aproxima-se com a flor muito apertada na mão, já quebrada. ‘Acabou de morrer.’, ouviu alguém dizer.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Personagens

Tília é namorada do Zé Pipa. São da Pasteleira. Cardinal é do Aleixo e apaixonou-se por Tília. Fez alguns avanços, no sentido mais abrangente do termo. O Zé Pipa não gostou, reuniu três amigos – o Tilinhos, o Togú e o Aníbal – e desceram ao Bairro do Aleixo para uma conversa esclarecedora.
Encontraram Cardinal sentado nuns degraus das Varandas do Douro, de cigarro na mão, sorriso aberto e óculos escuros. Falava com dois amigos de infância.
O Zé Pipa aproximou-se e, sem dizer boa tarde, fez uma pergunta. Cardinal tirou os óculos, olhou-o nos olhos e respondeu: ‘Ela é que quis. Disse-me que gostou.’
Entre parênteses: gargalhadas do Cardinal e dos amigos.
Aníbal deu um passo em frente e mostrou uma soqueira.
Entre parênteses: silêncio e tensão.
A notícia da visita dos vizinhos da Pasteleira já se tinha espalhado. Fernandinho, um primo do Cardinal, chegou a correr depois de ter chamado alguns amigos. Deu de caras com o quarteto. ‘Foda-se, cheguei tarde!’, disse com a boca aberta enquanto oferecia um bom soco no estômago do Tilinhos.
Alguns minutos e muitas gotas de sangue mais tarde, o Quarteto da Pasteleira – como ficou conhecido – subia a rua a cambalear. Contabilizavam os ossos inteiros e os músculos doridos. Repetiam mentalmente o slogan ‘quem vem ao Aleixo resmungar, sai daqui a sangrar!’
Cardinal agradeceu ao Fernandinho e ao resto da malta a ajuda, recompôs a roupa e, para comemorar, convidou toda a gente para umas linhas lá em casa.

terça-feira, outubro 12, 2004

Júlia.

É uma mulher bonita. Medidas certas, sorriso certo, cabelo sempre na posição certa. Mudou-se recentemente para o Bairro, para a casa de um tio falecido há alguns meses. Aproveitou a renda baixa e o quarto deixado livre para sair de Ermesinde: partilha o andar com duas primas e ajuda nas despesas da casa.
Não tem feito muitos amigos na vizinhança. Fala-se dela em tom sussurrado, olham-na de soslaio e comentam as visitas que recebe durante o dia. Caminha muito segura de si, com o nariz levantado: finge não conhecer as regras do Bairro. Gosta de ser subversiva, de dar nas vistas e causar escândalos. Fala pouco, mas não aceita um piropo calada. Quando lhe dizem ‘lambia-te aquilo que mais gostas’ responde sem pensar ‘a pila do meu homem!’ E toda a gente sabe que ela não tem homem. E toda a gente desconfia de que ela tem vários homens.
Há dias alguém a viu com um polícia. Houve comentários e suposições. ‘A sobrinha do Xico Finado’, como lhe chamam é uma personagem misteriosa. Ninguém sabe que tem um anúncio na secção de lazer do Jornal de Notícias.
Ultimamente não tem passado tanto tempo no Bairro.

segunda-feira, outubro 11, 2004

Jane L.

O estúdio é a cave duma vivenda de três andares, estreita mas funda. À frente duas janelas com grades; atrás a porta envidraçada, cheia de luz, dando para o jardim de meia dúzia de metros.
(...)
Procura a casa de banho, estonteada, deixa a porta aberta e confirmo o que já suspeitava: prepara a seringa, a droga, injecta-se.
(...)
Anoitece.
(...)
Agora foi ao quarto buscar um agasalho; cá em cima as noites de Outubro esfriam. Amo-a, julgo eu. Até aqui amei-as todas, é verdade, mesmo as mais feias, as que ruminam tanto a beleza das outras que alguma coisa lá fica dentro. Mas com Jane L. noto diferenças. Muitas? Sim, bastantes. O perfume, a altura, os olhos verdes, os reagentes que decompõem o homem. E nisto ela aparece.
Calma, sóbria. Ninguém diria que bebeu seis whiskys puros só a ouvir o Billy Brown, fora o almoço, a tarde, o jantar. Sorri; passos firmes, make-up refeito, penteada; aproxima-se e pára diante de mim. As pupilas enormes destoam um pouco do sorriso:
- Viste?
- Vi. Há quanto tempo?
- Quando te conheci não tinha começado.
- Dois anos?
- Três. (...) No regresso da lua-de-mel trato-me. Com força de vontade consegue-se. Só pergunto se vale a pena.
(...)
Conversamos, bebemos. Beijo-a e sinto-a contraída, quase a empurrar-me. De súbito começa a despir-se. Arranca o vestido, a combinação, o soutien, o slip; com pressa, fúria, pavor que alguma coisa se apague nela ou não chegue a acender-se. Resvalamos na cama. E então sacode-me, foge-me debaixo, levanta-se, enche o copo não sei quantas vezes, bebe de olhos fechados, vem deitar-se outra vez. Nem uma palavra. Agarra-me, experimenta um ou dois beijos, desiste. O corpo flácido, vazio. O desalento:
- Deixa-me, desaparece.
A voz reconstituída.
- A droga resolveu-me o problema.
Apesar do fogão aceso dia e noite o estúdio está frio.
(...)
- Hoje tudo vai correr bem.
- Hoje? Casas-te amanhã.
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(extractos de Serenata, em O Aprendiz de Feiticeiro, Carlos de Oliveira)

sábado, outubro 09, 2004

As operações stop

Porque o Bairro do Aleixo é um bairro seguro, por tudo e por nada fazem-se operações Stop. Já não se pode sair de casa descansado, a falar ao telemóvel e a conduzir, ou a beber um café enquanto se põe o cinto de segurança que temos logo uns simpáticos agentes a pedir-nos a identificação. Como se não nos tivessem já identificados a todos, com a maior das eficácias. Lêem os documentos e perguntam:
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- Mora aqui?
Resposta, educada e com a voz arrastada pelo sono:
- É o que diz aí.
Pergunta:
- O carro é seu?
Resposta:
- Também diz aí!
Pergunta:
- É o senhor H.?
Resposta:
- Isto é um anúncio que eu já ouvi, não é?
Pergunta ameaça:
- Só lhe fiz uma pergunta! Limite-se a responder.
Resposta:
- Desculpe. Pensei que pediam os documentos para os ler.
Pergunta:
- Bebeu alguma coisa hoje?
Resposta:
- Por acaso bebi.
Pergunta:
- Bebeu?
Resposta:
- Bebi.
Pergunta:
- Importa-se de fazer o teste de alcoolémia?
Resposta:
- Adianta dizer que não?
Ordem:
- Sopre aqui até eu dizer chega!
(Sopro. Sopro. Sopro.)
Afirmação:
- Não acusa nada.
Afirmação:
- Pois não.
Pergunta:
- Mas bebeu álcool?
Resposta:
- Foda-se! São nove da manhã! Bebi leite.
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Enquanto este diálogo decorre com um simpático agente, outro agente, igualmente simpático, sorri para a menina que tira cafés na Casa do Café, Miguel corre pelo Bairro a gritar ‘olha a moina, olha a moina’, o Rui acorda estremunhado com as buzinas dos carros, Sofia crava mais uma moeda entre o vermelho e o verde, o Pedro volta a adormecer depois de uma noite mal passada, a Isabel ninguém sabe onde está, o Joquinha das Claquetes abre o jornal enquanto se senta na retrete, o Xavier pede um bolo no outro café, o Tozé ‘Raquetas’ apanha o trinta e cinco, o António diz 'venha doutor, tem um lugar ali', a Michele fecha a cortina, o Filipe corre rua abaixo e muito pouca gente parece importar-se com esta operação stop.

sexta-feira, outubro 08, 2004

Pedro III.

Tinha acabado de dar o chuto quando a viu a descer do autocarro, com uma pequena mochila às costas. Há um mês ouviu-a dizer na paragem do autocarro ‘espera por mim’. Ele esperou e encontrou-a diferente. Não a quis abraçar. Disse ‘Olá. Acho que não consegui esperar’. Um mês pode ser muito tempo. Ela sorriu. Estava mais gorda, cabelo comprido, os olhos muito abertos. ‘Apanhei sol’. Com a mão apontou para o rio. ‘Vou ver a minha avó e depois, se quiseres, podemos descer.’ Ele não quis.

quinta-feira, outubro 07, 2004

A Mimi dos Pratos.

A história começa na primeira metade dos anos oitenta. Ela não era do Bairro. Estudava na Faculdade de Letras, creio eu. Faltava às aulas porque passava as noites no Swing. Queria ser a ‘primeira mulher atrás dos pratos’, mas só aprendeu a servir Vodkas Martini ao fim de dois meses de insistência: esquecia-se sempre da azeitona e exagerava no Martini. Namorou com dois ou três rapazes. Desejou ser lésbica. Queria ser radical. Começou a trabalhar. Visitou o Bairro do Aleixo. Apaixonou-se por uma estrela da música pop e corava sempre que o via na rua, a sair dum café, a beber um copo num bar, num concerto. Passou grande parte dos ‘loucos anos oitenta’, como ela própria dizia, a correr atrás dos concertos do Grupo Novo Rock. Vestia-se com estilo. Voltou a visitar o Bairro. ‘Tinha cá amigos’. Desistiu de ser a pioneira dos pratos nacionais, mas a alcunha ficou. Agora é tarde de mais. Já não tem firmeza nas mãos para segurar a agulha sobre os vinis. Vendeu a colecção de discos, vendeu um faqueiro de prata na Vandoma. Já não precisa de visitar o Bairro, porque agora passa cá os dias. Está magra, cabelo ralo e óculos muito velhos. Às vezes ainda tenta vestir-se com estilo. Dorme no patamar do número setecentos e trinta e agulhas só conhece as que partilha com o companheiro.

terça-feira, outubro 05, 2004

Michele.

Ou Miguel. Era um rapaz simpático, com muitos amigos. Vivia na última torre e quase nunca passava pelo meio do Bairro: quando saía de casa descia para o rio ou caminhava pelas Condominhas. Há seis anos foi morar para a Baixa, em casa de um amigo. Agora, com quase trinta anos, regressou. ‘Os meus pais estão velhos, precisam de mim.’
Fuma cigarro atrás de cigarro enquanto olha para a rua, sentado numa mesa do Café Caetano, pensativo. Tem o cabelo comprido com madeixas ruivas, olhos negros e unhas postiças, muito compridas. No rosto vêem-se ainda as marcas da noite anterior. Não se pintou ainda. Saiu de casa a correr. ‘Uma amiga tocou-me à campainha e pediu-me ajuda, quando cá cheguei a polícia já a tinha levado. Filhos da puta.’
Uma rusga. E logo de manhã, bem cedo. Ultimamente tem havido mais. Prendem para identificação quem encontram com mais do que uma dose, quem não consegue fugir rapidamente pelas escadas. ‘Ela volta! Isto é quase um ritual: escrevem o nome num impresso, mandam-nos ao médico e eles depois voltam para curar a ressaca.’
Michele, como gosta que lhe chamem, trabalha num bar na Baixa: ‘cantora e bailarina!’ Consome poucas drogas, quase sempre cocaína. Diz que já não tem idade para outras coisas e que consegue controlar-se. ‘O corpo não se compadece com excessos e eu preciso do meu para trabalhar. Os meus pais só me têm a mim.’
Quando está no Bairro do Aleixo tenta ser discreto, veste-se sem exuberância para não chamar a atenção. Já não tem amigos aqui. ‘Vêm cá quase todos, uns com mais frequência do que outros, mas não vivem cá. O Bairro, ainda assim, é um sítio pequeno.’

domingo, outubro 03, 2004

A polícia no Bairro do Aleixo

A população anda surpreendida e sem saber o que fazer com tanta polícia. Os habitantes têm lido e ouvido notícias sobre o aumento de policiamento no Bairro, sobre o aumento de polícias em regime de ‘loja de conveniência’ (ah?), sobre as intenções de vereadores, presidentes e assessores em transformar o Bairro do Aleixo num aglomerado habitacional ‘tão seguro como os mais seguros condomínios fechados do Algarve’.
Estas notícias assustam-nos. Não sabemos que posição tomar perante tanta inovação: por um lado temos mais polícias nas ruas e por outro temos um Bairro mais seguro. Diz a experiência que estes dois factores raramente coincidem.

sexta-feira, outubro 01, 2004

O herói do auto-rádio

É um rapaz novo, bonito, anda sempre com um cão castanho, de raça indefinida. Olha as pessoas de frente, tem um ar de mau que se desfaz ao primeiro elogio. Ganhou o estatuto de herói a ‘consertar’ auto-rádios extraviados. Daqueles com placas electrónicas e códigos de segurança. Está a pensar abrir um estabelecimento com o lema ‘se ficou sem a bateria do seu carro e perdeu o código do auto-rádio, nós resolvemos o problema’. Não colabora com redes mafiosas nem admite que o seu nome seja associado aos últimos assaltos. ‘O meu trabalho é honesto, não tenho culpa de ter este dom!’ Há mais heróis no Bairro do Aleixo.