No Bairro do Aleixo

segunda-feira, outubro 11, 2004

Jane L.

O estúdio é a cave duma vivenda de três andares, estreita mas funda. À frente duas janelas com grades; atrás a porta envidraçada, cheia de luz, dando para o jardim de meia dúzia de metros.
(...)
Procura a casa de banho, estonteada, deixa a porta aberta e confirmo o que já suspeitava: prepara a seringa, a droga, injecta-se.
(...)
Anoitece.
(...)
Agora foi ao quarto buscar um agasalho; cá em cima as noites de Outubro esfriam. Amo-a, julgo eu. Até aqui amei-as todas, é verdade, mesmo as mais feias, as que ruminam tanto a beleza das outras que alguma coisa lá fica dentro. Mas com Jane L. noto diferenças. Muitas? Sim, bastantes. O perfume, a altura, os olhos verdes, os reagentes que decompõem o homem. E nisto ela aparece.
Calma, sóbria. Ninguém diria que bebeu seis whiskys puros só a ouvir o Billy Brown, fora o almoço, a tarde, o jantar. Sorri; passos firmes, make-up refeito, penteada; aproxima-se e pára diante de mim. As pupilas enormes destoam um pouco do sorriso:
- Viste?
- Vi. Há quanto tempo?
- Quando te conheci não tinha começado.
- Dois anos?
- Três. (...) No regresso da lua-de-mel trato-me. Com força de vontade consegue-se. Só pergunto se vale a pena.
(...)
Conversamos, bebemos. Beijo-a e sinto-a contraída, quase a empurrar-me. De súbito começa a despir-se. Arranca o vestido, a combinação, o soutien, o slip; com pressa, fúria, pavor que alguma coisa se apague nela ou não chegue a acender-se. Resvalamos na cama. E então sacode-me, foge-me debaixo, levanta-se, enche o copo não sei quantas vezes, bebe de olhos fechados, vem deitar-se outra vez. Nem uma palavra. Agarra-me, experimenta um ou dois beijos, desiste. O corpo flácido, vazio. O desalento:
- Deixa-me, desaparece.
A voz reconstituída.
- A droga resolveu-me o problema.
Apesar do fogão aceso dia e noite o estúdio está frio.
(...)
- Hoje tudo vai correr bem.
- Hoje? Casas-te amanhã.
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(extractos de Serenata, em O Aprendiz de Feiticeiro, Carlos de Oliveira)