No Bairro do Aleixo

sexta-feira, novembro 26, 2004

Brocas II.

Riu-se quando soube do episódio do Joquinha. ‘Eu conheço a Brocas!’ Riu-se durante duas horas, pediu uma rodada de cerveja e ofereceu cigarros a toda a gente. Nunca ninguém soube o que aconteceu entre eles.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Joquinha das Claquetes II.

‘Brocas é nome de puta’, saiu do café aos gritos. Bateu com a porta e quase partiu o vidro. Prometeu aos amigos nunca mais pôr os pés no mesmo sítio que o Brocas e que se o apanhar a jeito ‘eu nem sei o que lhe faço’.

sexta-feira, novembro 19, 2004

Interlúdio

Na sequência de algumas questões que nos foram colocadas, queríamos dizer aos nossos leitores mais esporádicos que, para uma melhor compreensão destes textos e do Bairro do Aleixo, recomendamos a leitura ou, pelo menos, uma rápida consulta, dos primeiros textos publicados – especialmente os do mês de Março, Maio e Junho.
É também conveniente uma consulta à página da Associação para a Promoção Social do Bairro do Aleixo, onde podem encontrar informações factuais mais fiáveis.
Continuem a escrever-nos.

quarta-feira, novembro 17, 2004

O Brocas’ Gang e a CMTCONBA

O negócio continua a correr. O armazém está quase sempre cheio, já não há sequer espaço para os vasos com flores que decoravam a entrada. Já se pensa em aumentar as instalações e diversificar a mercadoria transaccionada: incluir pequenos electrodomésticos, uma linha de equipamento audiovisual e talvez alguns dvds piratas.
Numa reunião da Comissão de Moradores, Traficantes, Consumidores e Outros Negociantes do Bairro do Aleixo, o Brocas’ Gang foi reconhecido oficialmente como um Grupo de Sucesso Criminal do Bairro do Aleixo – GSCBA –, distinção até agora apenas atribuída a grupos de tráfico de estupefacientes. A Comissão louvou a iniciativa e os princípios do BG – como passou a ser conhecido – e propôs uma colaboração mais próxima entre as duas organizações.
Por o BG ser a única organização criminosa com trabalho independente do narcotráfico, está numa posição privilegiada para servir de embaixador criminal do Bairro. ‘A polícia, no que diz respeito ao nosso Bairro, só se interessa pelo narcotráfico. Qualquer outro tipo de associação criminosa passa despercebida se a actividade estiver centrada aqui.’ Disse um dos elementos da direcção da Comissão. ‘Temos que tirar partido disso. Alguém tem sugestões?’
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Ninguém se fez parco em palavras e choveram sugestões de acções concertadas entre o BG e a Comissão. Não vale a pena referir todas as intervenções, uma vez que, mesmo boas, eram quase todas irrealistas ou iam contra os princípios do Brocas e dos seus sócios.
Pedro, mais uma vez, teve um papel importante nesta discussão ao chamar a atenção dos presentes para o facto de grande parte dos problemas com as autoridades terem origem nos novos empreendimentos que estão a ser construídos e habitados. ‘É por causa dessas pessoas que a polícia nos está sempre a chatear e são precisamente essas pessoas o alvo do BG. O que eu sugiro é que a acção deles seja focada no sentido de impedir que mais pessoas venham para aqui morar. Se as casas ficarem vazias, se ninguém quiser lá morar, a polícia deixa de se interessar por isto.’
Alguém comentou a meia voz: ‘Ainda bem que o rapaz voltou!’
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E foi assim que antes de assaltar residentes o BG começou a assaltar preferencialmente potenciais residentes, agentes e promotores imobiliários.

domingo, novembro 14, 2004

Filipe IV.

Está sentado na berma do passeio. Lembra-se da Joana. Era mais ou menos ali que ela estava quando apareceu o carro. Ainda é cedo, há poucas pessoas na rua. Vai estar sol. Muito frio mas sol. Passou a última hora à procura de um cobertor, uma entrada de garagem mais quente.
‘Sabes qual é a diferença entre angústia e desespero?’, pergunta-me e responde sem hesitar. ‘Angústia é ter as narinas entupidas, os pulmões congestionados. Desespero é não encontrar a puta da veia para espetar a agulha!'
Continuou sentado, com a cabeça entre as mãos e as pernas a tremer.

quinta-feira, novembro 11, 2004

Pedro quase apaixonado

Finalmente. O amor chegou ao Bairro do Aleixo.
O Pedro fechou-se em casa. Num leitor portátil, adquirido com a ajuda de ‘uns amigos’, pôs um disco do Jimmy Scott em repeat, fechou as cortinas. Abriu uma garrafa de vinho tinto barato e meditou.
Ao fim da terceira repetição acendeu um charro, abriu outra garrafa de vinho e um chocolate com nozes. Escurecia no Bairro. Em Novembro as tardes são curtas.
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Encontrou-a por acaso numa livraria na baixa. Ele nunca entrava em livrarias. Estava à porta, a olhar para a capa de um livro com muitas cores, distraído. Ela chegou e ele viu a sombra dela na montra, viu as mãos, os braços, a curva da camisola vermelha, o cabelo a tocar no pescoço, o sorriso, os olhos claros, grandes.
- Conheces este livro?
- Não, mas pela capa parece ser muito mau.
Ele concordou e ficou sem saber o que dizer.
- Querias comprá-lo?
- Não, estava só a pensar como seria. Eu não leio muito. Nem sequer a Bola. Não tenho tempo.
- Porquê? Tempo tem-se sempre. Desde que tenhas vontade.
- Pois. Então não tenho vontade.
Ela mostrou intenção de continuar a caminhar.
- Espera. Queres... tomar um café? Estava a pensar sentar-me ali, aproveitar o sol.
- Está bem. Não tenho nada para fazer por enquanto.
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Sentaram-se com café e água com gás. Queria convidá-la para jantar mas não sabia como. Nunca tinha feito isso, nem sequer tinha dinheiro para pagar a conta. Pensou em dar uma corrida ao Bairro, cravar alguém, vender uma torradeira, traçar uma quarteira. Falaram. Ela falava mais, muito mais. Ele gostava de a ouvir e sentia-se bem. Foi quase como uma história, estar ali sentado com uma rapariga bonita, a escutá-la com todo o seu corpo.
Já passaram dois dias e o disco do Jimmy Scott ainda não parou. Ele sabe pouco inglês mas já decorou a letra do I’m getting sentimental over you. Enquanto dorme murmura o nome dela e não sabe como a pode encontrar outra vez. Entre uma garrafa de vinho e um cigarro pensa esperá-la no mesmo sítio, procurar na lista telefónica o número dela, colar cartazes na rua, falar com amigos, fazer um retrato robot, transmitir uma mensagem pela rádio, tomar conta de um satélite, amarrar-se na Ponte da Arrábida com um cartaz a dizer ‘Amanhã no mesmo sítio, à mesma hora!’
Adormece a pensar nela.

terça-feira, novembro 09, 2004

Espaços II.

Há mortes no Bairro do Aleixo. O último funeral foi o de uma mulher. Deixou um homem viúvo. Desolado. Pela primeira vez no Aleixo, alguém chorou com vontade agarrado a um caixão. Madeira escura, brilhante. Algumas gotas de água a salpicar o tampo por causa de um descuido da agência, mas ninguém reparou. Chorou durante várias horas, acompanhado por meia dúzia de pessoas desconhecidas.
‘Ela dizia-me que precisava de mais espaço. Eu nunca fiz nada. Só consegui responder-lhe: Espaço? Porra! O que tu precisas é que te preencham os espaços.’ Omitiu a última frase, mas dizem que continuava com ‘p’ró caralho!’ e um vaso pelo ar de encontro ao armário da cozinha.

sábado, novembro 06, 2004

Brocas’ Gang

Num domingo à tarde, sentado à mesa do café com alguns dos seus admiradores sobreviventes, Brocas teve uma ideia que transformou a sua vida num novo ponto de exclamação para os habitantes do Aleixo.
Tendo como objectivo combater a falta de orçamento para as suas despesas correntes e como colaboradores o Augusto e o Migas, começou a desenvolver uma actividade de roubo descarado de telemóveis, relógios, auto-rádios, pulseiras, brincos, colares, carteiras de couro, casacos deixados em automóveis e outros artigos de fácil transporte.
Grande parte do sucesso desta actividade está no facto de os alvos destes roubos serem os habitantes vizinhos do Bairro do Aleixo. Até agora, ninguém tinha encarado os novos empreendimentos habitacionais como um ponto estratégico para desenvolver novas actividades.
Inicialmente o escoamento dos produtos foi feito de forma tradicional: Vandoma, alguns contactos na Baixa, algumas lojas de artigos usados, uma ou outra feira das cidades vizinhas. O negócio começou a crescer. Mais empreendimentos, maior volume de negócios e o Brocas teve que alugar um armazém para reter o material durante algum tempo antes de voltar a colocá-lo no mercado.
Um dia em conversa com o segurança de um condomínio sugeriu-lhe, ‘como quem não quer a coisa e é a coisa que mais quer’, uma participação no negócio. ‘Em que termos?’ Perguntou o outro: um tipo robusto, com mais de cem quilos e olhar de mau. ‘Primeiro combinamos umas horas em que tu e os teus amigos vão dar uma volta, para não terem complicações comigo e não incomodarem a actividade. Depois, e se nos ajudarem a vender a mercadoria, podem ficar com vinte por cento dos resultados brutos.’
O segurança disse que precisava de pensar. Pensou e descobriu que os resultados líquidos e os resultados brutos nesta actividade coincidem. Juntou-se ao negócio e trouxe alguns colegas de outros turnos. O Brocas’ Gang aumentou de dimensão e de rendimentos.
Os seguranças dos condomínios começaram a criar uma carteira de clientes entre os moradores. É possível comprar um relógio que foi roubado ao vizinho da frente, é possível comprar um telemóvel igualzinho ao que desapareceu do bolso do casaco por um preço imbatível, e com alguma sorte, ainda com os números na agenda.
As despesas correntes do Brocas estão asseguradas.

sexta-feira, novembro 05, 2004

Sofia II.

Continua uma presença frequente na rua. De tanto a ver e de a pensar tenho dificuldade em escrever sobre ela. Disseram-me que agora sorri menos. Tem uma mochila nova, branca por enquanto, e um cobertor pequeno, amarelo, que usa para se cobrir depois de fazer um colchão com duas caixas de cartão. Deita-se com as mãos junto ao queixo. Parece dormir bem, apesar do frio. Tem medo do Inverno. É o segundo que passa sem casa, sem um sítio quente onde dormir. ‘No Inverno, com a chuva, os carros não abrem as janelas e eu não consigo tantas moedas.’ Tem amigos no Bairro, amigos com casa, com cobertores, com água quente. ‘Quando não aguento mais peço-lhes ajuda, dividimos o que temos e cortamos as ressacas a meio.’ Já se habituou à perna, à falta dela. ‘O que mais me custa é subir esta rua de muletas com chuva. Estou sempre a escorregar.’ Acaba o café e sorri outra vez. É bonita.

quinta-feira, novembro 04, 2004

Espaços

Ou outra vez Os Cafés do Aleixo.
Encontramos o Pedro a conversar com um amigo desconhecido.
- atão?
- ...
- iá, tás a curtir?
- iá
- e atão?
- é isso
- boa cena
- pois
- tótil... curto largo
- iá
- ...
- foda-se... ela disse-me que precisava de espaço
- iá
- o que ela precisava mesmo era que lhe enchessem os espaços
- ...
- Que cena

quarta-feira, novembro 03, 2004

O cobertor

Parece mais uma daquelas mantas de viagem que costumam ficar estendidas nas malas dos carros dos pais, ou dobradas junto dos cestos dos pic-nics que se faziam há vinte anos. Vinte anos parece muito tempo. As mantas sobrevivem sempre e até passam várias vezes de mãos em mãos, de casa em casa. É vermelho e tem quadrados azuis.
Perdeu-se numa dessas mudanças de casa que se fazem quando na família nasce o segundo filho. Ficou esquecido dentro de um saco, encostado a um caixote do lixo na rua. O Rui encontrou-o e deu-lhe uso no abrigo improvisado, junto aos semáforos no Campo Alegre. Era no início da Primavera e a temperatura das noites não justificava um cobertor maior. Estava bem assim, com o remate em cetim vermelho, limpo e com a marca das dobras. Com ele embrulhou um dia alguns objectos para trocar por algumas moedas. ‘Pode ficar com tudo menos com o cobertor, preciso dele.’ Acabou por ceder e deixou ficar tudo. As marcas das dobras foram entretanto substituídas por algumas nódoas. ‘Isso é vinho, sai com facilidade.’
Algumas semanas depois, já quase Verão, voltamos a ver o cobertor. Está mais sujo e com outro cheiro. Serve de toalha para uma refeição. A Sofia tenta alisar o tecido e, com uma escova pequena, limpa como pode o espaço à volta do cobertor. Não é um pic-nic como se lembra de fazer com os primos, numa praia fluvial a seguir a Entre-os-rios. Há memórias pouco importantes. Uma dose mais forte, um sono mais pesado ou uma ressaca mais longa fazem o cobertor ficar abandonado outra vez. De cada vez mais sujo, odores acumulados, dobras repisadas e buracos de cigarros.
O Outono passou e o cobertor não serviu de muito. Está gasto, esburacado e não protege da chuva. Fica pesado quando está molhado e é muito difícil de secar. A bainha de cetim já não é macia, já não conforta os dedos, as mãos. A bainha de cetim está rota, descosida.
E chega o Inverno: mais chuva, mais vento, mais frio. O cobertor tenta uma vez mais servir de cama, aconchegar o Octávio ou a Isabel. Às vezes não serve.
Fica abandonado num canto, encostado a um portão, quase tapado por um monte de folhas húmidas. Dois gatos brincam com ele e a fita de cetim rasga-se definitivamente.

segunda-feira, novembro 01, 2004

António II.

Caminhava devagar hoje. Ia a cantar só eu sei que sou terra, terra agreste por lavrar... só eu sei que sou pedra, pedra dura de talhar... Era um bom dia, apesar da chuva torrencial. Porque eu não sei se me quero polir, também não sei se me quero limar... Ia cumprimentar-me, mas a métrica do verso não permitiu uma paragem na canção. Só eu sei que sou erva, erva daninha a alastrar. Ele não sabe o meu nome, não sabe nada de mim. Em moldes feitos não me sei criar, as formas feitas podem-se quebrar.