No Bairro do Aleixo

quarta-feira, novembro 03, 2004

O cobertor

Parece mais uma daquelas mantas de viagem que costumam ficar estendidas nas malas dos carros dos pais, ou dobradas junto dos cestos dos pic-nics que se faziam há vinte anos. Vinte anos parece muito tempo. As mantas sobrevivem sempre e até passam várias vezes de mãos em mãos, de casa em casa. É vermelho e tem quadrados azuis.
Perdeu-se numa dessas mudanças de casa que se fazem quando na família nasce o segundo filho. Ficou esquecido dentro de um saco, encostado a um caixote do lixo na rua. O Rui encontrou-o e deu-lhe uso no abrigo improvisado, junto aos semáforos no Campo Alegre. Era no início da Primavera e a temperatura das noites não justificava um cobertor maior. Estava bem assim, com o remate em cetim vermelho, limpo e com a marca das dobras. Com ele embrulhou um dia alguns objectos para trocar por algumas moedas. ‘Pode ficar com tudo menos com o cobertor, preciso dele.’ Acabou por ceder e deixou ficar tudo. As marcas das dobras foram entretanto substituídas por algumas nódoas. ‘Isso é vinho, sai com facilidade.’
Algumas semanas depois, já quase Verão, voltamos a ver o cobertor. Está mais sujo e com outro cheiro. Serve de toalha para uma refeição. A Sofia tenta alisar o tecido e, com uma escova pequena, limpa como pode o espaço à volta do cobertor. Não é um pic-nic como se lembra de fazer com os primos, numa praia fluvial a seguir a Entre-os-rios. Há memórias pouco importantes. Uma dose mais forte, um sono mais pesado ou uma ressaca mais longa fazem o cobertor ficar abandonado outra vez. De cada vez mais sujo, odores acumulados, dobras repisadas e buracos de cigarros.
O Outono passou e o cobertor não serviu de muito. Está gasto, esburacado e não protege da chuva. Fica pesado quando está molhado e é muito difícil de secar. A bainha de cetim já não é macia, já não conforta os dedos, as mãos. A bainha de cetim está rota, descosida.
E chega o Inverno: mais chuva, mais vento, mais frio. O cobertor tenta uma vez mais servir de cama, aconchegar o Octávio ou a Isabel. Às vezes não serve.
Fica abandonado num canto, encostado a um portão, quase tapado por um monte de folhas húmidas. Dois gatos brincam com ele e a fita de cetim rasga-se definitivamente.