O regresso da América do Sul
Conforme disse no último post, cá estou eu de regresso ao Bairro depois de uma estadia na América do Sul: uma estadia em lazer e em trabalho de investigação. Para não levantar suspeitas organizei a viagem não aos países produtores mas a um país exportador, intermediário portanto. Fiquei instalado na Argentina, entre Buenos Aires e Ushuaia. Deixei à providência a parte desta viagem dedicada ao lazer e, depois de definir um plano de trabalho, tratei de estabelecer alguns contactos locais – sempre com a preciosa ajuda das telecomunicações de banda larga – para não perder muito tempo nos primeiros dias da minha estadia. Estes contactos revelaram-se de uma utilidade sem preço. A viagem enquanto viagem seria um assunto muito fértil para um outro blog, chamado talvez ‘uma viagem na Argentina’ ou ‘a minha estadia na terra do Tango’ ou ainda ‘o dia em que Diego Maradona foi internado pela quinta vez’. Por agora vou ficar pelos factos relevantes para a vida do Bairro. É sabido que a melhor forma de estudar o mercado de estupefacientes é através de um processo de aproximação, mais ou menos discreto, também conhecido por ‘vai lá e compra!’ Obviamente que um cidadão estrangeiro não pode fazer isso e tem que recorrer a estratégias mais recatadas. Daí a importância dos contactos pré-estabelecidos. Informei-me devidamente sobre os processos de importação, sobre as matérias importadas e sobre a situação das empresas importadoras e sobre o percurso da matéria prima até à exportação para os países europeus com quem existem acordos de cooperação. Conforme fui recolhendo informações, principalmente sobre os processos de circulação interna das matérias primas, senti-me mais à vontade para me aproximar dos indivíduos que actuam directamente nos subúrbios da cidade. Esta aproximação não foi isenta de problemas nem de sobressaltos. Não vou falar de mais pormenores para salvaguardar a minha privacidade e o eventual rendimento que possa vir a ter com a publicação de TODA A VERDADE! O importante e aquilo que interessa saber é que a cocaína entra na Argentina já transformada em pó e com um grau de pureza perto dos 100%. Esta mercadoria é descarregada, entre outros locais, nos subúrbios perigosos e assassinos de Buenos Aires. Depois existem dois caminhos possíveis. O primeiro: a droga é transformada através de um processo conhecido por ‘traçar’, ou seja, misturar à substância original uma porção de outra substância qualquer que possua a mesma textura, que não afecte a coloração da original e que não seja demasiado perigosa para o consumidor. Esta mistura é feita na proporção desejada de forma a obter pelo menos três vezes mais pó do que o que se tinha originalmente. Depois de devidamente multiplicada é introduzida nos mercados vizinhos subdividida em múltiplos de cinco gramas ou em unidades. O preço de mercado varia conforme a zona onde se adquire e conforme o perigo de entrar ou sair nessa zona. Digamos que quanto mais perigoso for, mais barato fica e menos probabilidades temos de gozar a compra. O preço pode variar entre os vinte e os setenta pesos por grama, ou seja entre cinco e vinte euros! O segundo: a pureza da cocaína é mantida quase intocável e é exportada para os países europeus através de barcos de mercadorias, aviões militares ou civis, em cruzeiros de luxo, disfarçada de filmes pornográficos, dentro de animais exóticos, no estômago de pessoas ou mesmo, se em pequenas quantidades, pelo correio normal. Estes processos são mais ou menos conhecidos, mais ou menos detectáveis. O seu grau de eficácia é o necessário para fornecer alguns milhares de consumidores entre Lisboa e Moscovo. Uma vez descarregada na Europa, a mercadoria é sujeita a alguns testes de controlo de qualidade que vão ditar o prazo e o valor da transferência bancária para uma conta sem titular conhecido. A mercadoria é introduzido depois em laboratórios especializados onde vai ser ‘traçada’, segundo o processo já descrito, e dividida de acordo com o mapa de encomendas. A parte mais cansativa está feita e a partir daqui entra-se numa sequência de acontecimentos mais ou menos rápidos que provocam a proliferação de pequenas doses pelos países, pelas cidades, pelos bairros e pelas casas dos cidadãos europeus. O Bairro do Aleixo entra em cena aqui. Recebe algumas destas pequenas doses. Pequenas aqui significa embalagens de quinhentas gramas a cinco quilos. Como noutros bairros, ou noutros centros de comércio, procede-se mais uma vez ao processo de multiplicação da matéria e de divisão do resultado em doses ainda mais pequenas – uma a cinco gramas. Esta multiplicação é tão maior quanto mais necessidade houver em facturar e menos preocupação com a satisfação do cliente. Depois é vendida ao consumidor final ou a outros pequenos e ocasionais intermediários. Como é fácil perceber, cada uma destas etapas corresponde a uma diminuição da qualidade e a um aumento do preço. Para terem uma ideia mais clara: o que em Buenos Aires, depois da importação e de ter passado por três fases de intermediação, custa entre cinco e vinte euros e tem uma qualidade a que poderíamos chamar, sem reservas, de muito boa, custa na Europa entre quarenta e sessenta euros e a qualidade é, sem pudor, fraca. Não podemos esquecer que à saída dos países produtores um quilo de cocaína pura custa cerca de dez euros. Ninguém duvida que este é um dos negócios mais rentáveis do globo e devemos estar orgulhosos pelo Bairro do Aleixo – o nosso bairro, O Bairro – fazer parte desta harmonia universal.
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