No Bairro do Aleixo

quinta-feira, setembro 02, 2004

A reunião de família

Já há muito que se falava numa reunião com os herdeiros das principais casas traficantes do Bairro do Aleixo. Aconteceu finalmente.
Reuniram-se discretamente num restaurante nos arredores da cidade. A convocatória foi feita por um processo de boca a orelha, com confirmação por escrito. Apenas duas linhas, a indicar o lugar e a hora, nuns papeis pequenos deixados quase por acaso, debaixo dos copos de água no café ao lado do Centro de Saúde.
Os convocados, na sua maioria mulheres entre os 25 e os 35 anos e com uma visão feroz e mercantilista dos negócios do Bairro, não ultrapassavam a dúzia e chegaram todos à hora marcada. A ansiedade em pôr as novidades em dia, em falar das cotações das mercadorias e das últimas transacções, fez com que os pedidos fossem demorados. Felizmente alguém se antecipou e pediu vinho.
Antes do início da ordem de trabalhos foram apresentadas amostras dos melhores produtos do mês, alguns dos quais não chegaram sequer a ser comercializados.
OS DOIS PONTOS DA ORDEM DE TRABALHOS
Em primeiro lugar fez-se o ponto da situação actual do comércio no Bairro, com algumas comunicações muito bem fundamentadas e documentadas sobre as actuais condições de importação, sobre a qualidade dos produtos, sobre a flutuação de clientela e a taxa de permanência. Algumas destas comunicações suscitaram comentários e reacções, mas nenhuma digna de nota.
Passou-se em seguida para a discussão sobre as linhas de acção para o futuro. Este ponto, mais polémico, dividiu os presentes, permitiu tirar algumas conclusões, adiou decisões e não gerou consensos.
Uma jovem herdeira falou da renovação das gerações, defendeu que se deve, o mais rapidamente possível e de uma forma inequivocamente eficaz, assumir o comando de todos os sectores do Bairro. ‘Estamos a perder terreno. Os nossos pais e tios já não conseguem dar resposta às necessidades. São lentos e conservadores. Temos que melhorar a nossa capacidade de produção e, principalmente, de distribuição.’ Esta conclusão, no final de um discurso quase improvisado, inflamou a plateia e anunciou uma grande sequência de comunicações.
Tomou a palavra um rapaz de óculos grossos, vestido com uma camisa azul clara às riscas. Numa voz pausada e clara, apresentou o seu ponto de vista sobre a qualidade dos estupefacientes. Afirmou que ‘o sucesso do Bairro depende apenas da qualidade dos produtos oferecidos. Temos conhecimentos para construir os melhores laboratórios da cidade e temos os melhores investigadores do norte do país. Perderemos rapidamente a nossa posição no mercado sem ofertas de qualidade.’ Nova chuva de aplausos e algumas manifestações de desagrado. ‘Isso pode custar mais dinheiro do que o que parece!’, sussurrou alguém.
O terceiro orador da noite, uma mulher com cerca de trinta anos, educação britânica e voz sensual, fez silenciar a plateia quando começou por dizer ‘devemos, sem perder tempo com escrúpulos ou moralidades, pressionar de todas as formas o nosso governo no sentido de lhes explicar muito bem a importância e o peso do nosso sector. Temos que provar que, por cada grama de pó aqui vendida, o rendimento do país melhora. Temos que demonstrar que não vale a pena combater o narcotráfico porque, com isso, só perdem votos e mandatos. Usaremos todas as nossas armas para chantagear o poder político e transformá-los em marionetas nas nossas mãos.’ Fez um silêncio mais prolongado e, apesar dos sorrisos de aprovação da maioria da plateia, ninguém, absolutamente ninguém, quebrou o silêncio. Continuou sem alterar o tom de voz: ‘sim, falo em usarmos as provas que temos contra políticos e governantes para obter benefícios. Quantos de vocês fornecem os nossos governantes? Quantos de vocês receberam já cheques, de somas avultadas, assinados por pessoas que estão no poder?’ Terminou a intervenção agradecendo a atenção de todos e regressou ao seu lugar.
Esta opinião suscitou algumas respostas, ora manifestando compreensão ora algumas reticências em relação a procedimentos deste tipo. ‘Estaríamos a abrir precedentes graves no código de conduta dos traficantes’, disse alguém. Ouviu-se de imediato outra voz: ‘No Bairro ninguém tem nome próprio, ninguém tem personalidade para além da quantidade e do valor da compra.’
Uma das últimas intervenções retomou a questão da qualidade dos produtos, não como uma forma de ultrapassar a concorrência, mas como uma forma de aumentar a taxa de permanência e de fidelização dos clientes. ‘Não podemos continuar a perder clientes por morte prematura. Fornecendo bons produtos, garantiremos maior qualidade de vida e maior longevidade aos nossos clientes, e, consequentemente, mais lucro.’ Alguém concordou concluindo a fórmula matemática: ‘É preferível vender bom material durante trinta anos à mesma pessoa, mesmo ganhando menos vinte por cento em cada transacção, do que ter um cliente só por dez anos. Não é?'
A madrugada já ia alta. Começaram a tocar telefones e algumas pessoas começaram a sair. Para terminar o encontro, um dos organizadores do jantar, resumiu os pontos abordados e concluiu que ‘alguns dos assuntos aqui falados são recorrentes nas reuniões da Comissão – como a promoção e o melhoramento dos métodos de distribuição – enquanto que outros são manifestamente inovadores e merecem a nossa melhor atenção. Devemos continuar com os investimentos na investigação e procurar conclusões. Unidos, poderemos em pouco tempo elaborar um documento e fazê-lo aprovar pela Comissão. Poderemos então avançar com medidas efectivas. Os nossos pais, os nossos tios e padrinhos estão a envelhecer – alguns estão mesmo presos. Está na hora de os substituirmos e avançarmos de cabeça levantada para a construção de um novo Bairro. Um Bairro para o futuro.’
Uma ovação final deu por terminada a reunião e todos foram unânimes em garantir o sucesso do encontro.