sexta-feira, abril 29, 2005
A lista de canções foi mudando. Consome menos drogas e juntou umas notas para comprar mais discos. De vez em quando entra numa livraria e folheia alguns livros. Gosta especialmente de livros de fotografia. Tentou ler um livro de poemas, porque gostou do nome da autora. Não conseguiu, mas comprou o livro mesmo assim. ‘Há-de servir para alguma coisa. Ofereço-o a alguém.’, pensou enquanto tirava a última nota de vinte da carteira.
A vida para ele não tem sido fácil. Começou muito cedo a fazer trabalhos indefinidos e não qualificados para sobreviver. Desde que eu o conheço já percorreu uma série de actividades que, a serem exercidas dentro da legalidade, dariam muito que falar na repartição de finanças do 6º Bairro Fiscal; já mudou de namorada algumas vezes; já se desintoxicou de livre vontade e sem ajuda profissional duas vezes. Orgulha-se disso, apesar de ter sempre um novo vício.
Qualidade é ires trocando as substâncias. O teu corpo não se habitua a nenhuma verdadeiramente e desenvolve resistências para todas elas. Ficas mais forte!’ Costuma dizer quando explica a sua forma de encarar o consumo de estupefacientes e de outras substâncias. Diz que quando for mais velho, e tiver ganho dinheiro suficiente para não fazer mais nada, se vai dedicar à escrita de um manual sobre ‘Como a coca me libertou da heroína, como os ácidos me libertaram da coca, como o álcool e a marijuana me libertaram dos ácidos e como o amor me libertou de tudo isto!’ Um título extenso, programático, ambicioso. ‘Um título como deve ser!’, concluiu depois de acabar o copo de vinho sobre a mesa. ‘Só me falta o amor para me libertar do resto.’
O Pedro já é uma estrela no Aleixo e ninguém fica indiferente ao efeito que a Primavera e o calor está a ter nele. Mais sorrisos, mais cor e roupa nova. Há quem diga que está prestes a libertar-se de tudo. Há quem diga que o Pedro assim não tem piada. Há quem precise dele no Bairro, envolvido e comprometido.
Ele garante que não pretende mudar de morada, nem mesmo o amor o tirará do Aleixo.
segunda-feira, abril 25, 2005
Ruquinha das Milongas.
É um tipo engraçado. Magro, alto, aparência cuidada. É inteligente, gosta de falar e de ouvir as pessoas. Tem um sentido de humor duvidoso, mas eficaz. O seu passatempo preferido é passar os fins-de-semana a dançar. A sua grande paixão é o Tango, mesmo que às vezes pense noutras coisas. Também gosta de ritmos africanos e do calor das peles negras.
Sai de casa todos os dias de manhã cedo, apanha o trinta e seis para a Boavista e desaparece num dos edifícios de escritórios. Ao fim da tarde regressa, ou de autocarro ou de boleia com um amigo. Fecha-se em casa e ouve discos gastos, vozes graves e imagina pessoas. Imagina-se no meio de milongueros, numa praça porteña ao som do bandóneon.
Ao fim de semana calça uns sapatos pretos, de verniz e tacão, põe gel no cabelo, para parecer molhado, veste uma camisa preta e umas calças com pregas e transforma-se. A alcunha vem destes fins-de-semana.
O que mais o atrai no Tango é a virilidade dos passos, a sensualidade dos movimentos e as saias compridas lançadas ao ritmo da música. Às vezes tenta acompanhar uma ou outra canção, mas, como tem dificuldade no sotaque, desiste rapidamente.
Quando está triste ou o dia não está a correr bem, imagina uma milonga ou um passo de tango mais elaborado, pensa em Gardel ou na voz do Rivero e acalma-se.
Todos os anos reserva uns dias para viajar até Buenos Aires, sonha com o Abasto e com San Telmo. Nunca conseguiu lá ir. Tem uma estante cheia de livros com fotografias, letras de canções, histórias do tango. Numa gaveta guarda o seu maior segredo: uma camisa preta com folhos discretos e um frasco de brilhantina comprada na Vandoma para usar no dia em que puser os pés no Club Almagro. Guarda também religiosamente, embrulhado num lenço de linho branco, um livro com poemas do Horácio Ferrer. Uma primeira edição comprada na Internet. ‘Valioso, muito valioso’, costuma dizer sempre que o mostra a alguém.
Não nasceu no Bairro, mas depois de um conjunto de acidentes pouco felizes na sua vida acabou por cá vir parar. Ninguém sabe ao certo se ele consome heroína ou se apenas vende. Há quem afirme que o trabalho dele não tem nada a ver com isto e que gosta de viver cá porque é barato e está perto do rio.
Tem uma fotografia gigante da Amelita Baltar na parede do quarto.
quarta-feira, abril 20, 2005
Festival Químico
Embora um pouco tardiamente, o Bairro do Aleixo decidiu celebrar o primeiro aniversário da criação da sua imagem mais oficial com uma iniciativa única em Portugal: a primeira edição do Festival Químico – consumo e produção de estupefacientes.
Este projecto tem como objectivo desdramatizar o consumo de drogas químicas entre a população. Do cartaz constam debates, conferências e outras acções culturais. Por exemplo: um seminário sobre ‘O consumo e a produção de drogas sintéticas na Nova Europa’; um encontro com um sociólogo belga onde discutiremos o tema ‘A presença de psico-fármacos nas relações sócio-políticas de uma Europa moderna’; uma conferência, com a presença de euro-deputados, onde se falará do ‘Consumo de cocaína nos corredores do Parlamento Europeu’.
Está ainda prevista a apresentação pública do polémico livro ‘As anfetaminas e o catolicismo moderno’, de um ilustre teólogo romeno com ligações ao Vaticano.
No programa de diversão estão agendadas várias festas, todas elas clandestinas e secretas, e ainda um concurso de pastilhas estimulantes onde será eleito o Químico do Aleixo – 2005. Os concorrentes interessados podem enviar propostas até ao fim do mês do Abril. Os regulamentos do concurso podem ser consultados no Bairro do Aleixo, Torre 1.
A organização do festival, apesar de independente, tem todo o apoio da CMTCONBA. É aliás da Comissão que vem a grande novidade deste festival: uma encomenda especial e exclusiva, a um reconhecido designer de drogas sintéticas inglês, de um ácido para o Bairro do Aleixo.
O designer, que por razões de segurança permanecerá anónimo, já esteve duas vezes no Bairro, onde contactou com o mercado e com a população. Ouviu os anseios de jovens, velhos e mulheres. Colocou questões sobre a segurança no Bairro, sobre as intervenções policiais e sobre as condições de aprendizagem na escola primária. Ficou contente com o que viu, regressou aos seus aposentos no SPA da Boavista, e prometeu novidades para o primeiro dia do festival. A nova droga chamar-se-á, soubemos, Alexius Rosa 0.1. O nome é uma homenagem à maior figura feminina do Bairro do Aleixo, por quem o designer convidado se apaixonou desde a sua primeira visita.
‘Estou muito impressionado com a força desta mulher. Sem o seu sorriso e sem a sua energia este Bairro não seria o mesmo. Estou verdadeiramente enchanté com a sua beleza e com a sua eloquência’, disse-nos antes de se fechar no seu quarto de hotel.
O festival está marcado para a primeira semana de Maio, embora a sessão de abertura esteja dependente do resultado do trabalho do convidado inglês.
Daremos mais notícias quando nos for possível e autorizado.
terça-feira, abril 12, 2005
As noites II.
Toxicodependente dá entrada nas urgências com queimaduras de terceiro grau: queimado com gasolina enquanto dormia encostado à entrada de um prédio.
Jovem de 27 anos brutalmente espancado no Bairro do Aleixo: adormeceu depois de se injectar e foi espancado por um grupo de jovens de uma torre vizinha.
Homem desfigurado por um cão: um cão de guarda de um habitante do Bairro do Aleixo atacou um homem de quarenta e cinco anos que dormia na rua.
Toxicodependente atirado para dentro de um caixote do lixo quase triturado: funcionários dos serviços municipais de limpeza encontram um jovem desmaiado dentro de um caixote do lixo, quando despejavam o seu conteúdo.
Mulher é encontrada nua numa paragem de autocarro: depois de assaltada e violada junto a uma das torres do Bairro do Aleixo foi deixada no meio da rua ontem de manhã.
Homem dá entrada nas urgências do Hospital Geral de Santo António baleado: três crianças balearam, como divertimento, um homem que se dirigia ao Bairro do Aleixo para comprar heroína.
As noites, um ano depois, continuam difíceis no Aleixo.
quinta-feira, abril 07, 2005
Jim louco por ti, mas menos!
Ainda não morreu. Os mitos não morrem quando os queremos matar.
Arranjou emprego sem a ajuda de ninguém. É segurança durante o dia, das 8 da manhã às 4 da tarde, nas obras do novo condomínio. Regista a hora e o nome de quem entra e de quem sai num formulário em triplicado.
Quando acaba o turno vai beber um fino às Três Irmãs ou a outro lado qualquer. Há dias disse que um dia destes perde a cabeça e mostra uma nota de cinquenta à Júlia. ‘Só quero que ela veja. A nota na minha mão. Puta!’ Quando se cruzam, o que acontece raramente, já não se incomoda. Anda a dormir com uma mulher que vive sozinha em Pinheiro Torres.
terça-feira, abril 05, 2005
Júlia III.
Saiu de um táxi letra A. Tirou uma mala grande, cara, daquelas quadradas e resistentes, com rodinhas. Já não vinha ao Bairro há vários meses. As primas pensaram que se tinha mudado definitivamente. Arrumaram o quarto dela e puseram um anúncio em vários cafés das redondezas. Não apareceu ninguém para ocupar o quarto e a caixa com a roupa dela ficou a acumular pó num canto com humidade.
Entrou em casa, pagou a sua parte da renda em atraso e fechou-se no quarto. Não falou durante vários dias. Um rapaz desconhecido foi visitá-la algumas vezes.
Saiu à rua a primeira vez ontem. Já não é orgulhosa. Já não responde quando lhe mandam piropos. Já não lhe mandam piropos. Engordou, envelheceu, deitou fora as mini-saias, as blusas decotadas, deixou de pintar o cabelo. Ofereceu-se para mulher-a-dias e outros serviços. Não quer pôr anúncios no jornal. Prefere engatar na rua, durante a noite. Baixou os preços e trabalha mais para ter a mesma receita. Quando pensa no Jim, já não é com desprezo, mas com saudade.
Dentro de algumas semanas vai dar entrada nas urgências do Hospital de Santo António.
A recepcionista ou a gerente de uma pensão na baixa vai responder na polícia: ‘Foi encontrada na cama. Sangrava muito. Entrou na pensão ontem ao fim da tarde com um homem. A empregada, de manhã, bateu à porta para mudar os lençóis. Ele saiu de madrugada. Não deixou identificação. Normalmente não pedimos. Ela é conhecida. Levava para lá quase todos os clientes. O quarto ficava só para ela toda a noite. O primeiro normalmente era por volta das seis ou sete da tarde. Talvez uns três ou quatro por noite. Nunca entrou com mais do que um.’
sábado, abril 02, 2005
Alberto II.
Arranjou um quarto na torre quatro. Em casa de uma velhota viúva que ouve mal. Paga cinquenta euros por mês e compra o leite. Respondeu a um anúncio a pedir serventes de trolha. Mesmo sendo um bocado velho para servente, foi contratado à experiência. Trabalha das duas da tarde às dez da noite, sem intervalo. Não é muito. Já trabalhou muito mais. O salário é razoável. Dá para as despesas, mas não dá para a ‘castanha’ toda que precisa. Já tentou arranjar outro trabalho, distribuir folhetos nas caixas de correio mas não conseguia acordar de manhã. Desistiu ao fim de uma semana.
Depois de ter passado dois meses na rua, sem casa, sem dinheiro e a viver de frágeis expedientes que o mantiveram vivo, não pode dizer que está mal. Ajudou clientes do Bairro que não se conseguem injectar, em troca de pequenas dose de pó. Roubou ocasionalmente carteiras nos autocarros. Traficou cocaína e anfetaminas em bares e discotecas. Prometeu protecção a uma amiga em troca de quarenta por cento das receitas dela, o negócio acabou quando ela foi espancada e quase morta por um cliente.
Recebeu o primeiro salário este mês. Receitas fixas.