No Bairro do Aleixo

quinta-feira, março 31, 2005

Teresa II.

Jesus já não mama. Ela já vai aparecendo no café mais vezes. Como ainda não está oficialmente a trabalhar tem tempo para conversar. Foi o que pensei. Tentei falar com ela sobre outros assuntos para além do tamanho dos cafés e da quantidade de manteiga nas torradas. Olhou-me com má cara. ‘Achas que eu sei alguma coisa do que se passa ali? Eu tenho um filho. Tenho que olhar pela minha vida e não pela dos outros.’
Pedi desculpa. ‘Não foi isso que quis dizer. Posso pedir um café?’

terça-feira, março 29, 2005

Xavier III.

‘O nosso amigo Xavier, foi ao supermercado comprar almôndegas mas foi roubado. Contratou um advogado para o defender...’
Aprendeu esta canção com uns miúdos e não a consegue esquecer desde que foi apanhado no mini-preço a meter garrafas de gin dentro do casaco. Não foi grave. Pediu desculpa. Garantiu que nunca tinha feito aquilo. Que era a primeira e a última vez. Que a mãe está doente e ele precisa de dinheiro para os medicamentos. Que foi um amigo que lhe sugeriu ‘roubar umas garrafitas, que dão uma boa massa lá em baixo.’
Deu as garrafas ao segurança e saiu a correr. Ainda conseguiu trazer dois pacotes de bolachas que tinha desviado antes. ‘Bolachas não dão dinheiro, mas tiram a fome, porra!’, disse ao amigo que sugeriu a tarefa e o esperava para receber a mercadoria.

domingo, março 27, 2005

Zé II.

Nunca mais foi o mesmo desde que o FCP perdeu com o Nacional da Madeira. Será dos poucos frequentadores regulares do Aleixo que faz depender o tamanho da pedrada dos resultados do futebol. Jurou que só se chutava outra vez quando ‘os chutos daqueles cabrões marcarem mais golos!’. Manteve a promessa até ao quarto dia, depois confessou-me que com as dores que tinha não era capaz de pensar nos golos marcados ou sofridos. Só via chutos durante a noite e não conseguia dormir.
Vendeu uma réplica em miniatura da taça de 87 a um primo de um amigo e estourou o dinheiro todo numa tarde.

sábado, março 26, 2005

Michele IV.

Sexta-feira. Santo feriado. Poucas pessoas na rua. Um sol que não é sol, com chuva que não também não é chuva. O Bairro do Aleixo não parece o Bairro do Aleixo.
‘Ganda cena! Já viste o relógio?’, Michele acordou muito tarde e saiu de casa para comprar cigarros. Queria caminhar. Estava tudo parado no Bairro, até o relógio da igreja. Sem saber porquê apeteceu-lhe entrar e sentar-se durante alguns minutos num dos bancos, encostada à parede fria.
Só muito raramente sai à rua. Há quem diga que a maior parte das noites não as passa em casa. Que só cá vem de vez em quando visitar os pais e tenta passar despercebida. Usa sempre cabeleiras diferentes, que combina cuidadosamente com uma colecção de óculos escuros que trocou com uma amiga. ‘Ela devia-me alguns favores e antes de ir para Espanha ofereceu-me esta caixa. São bonitos, não são?’ Eram bonitos. Óculos de todas as cores, grandes, pequenos.

quinta-feira, março 24, 2005

Um ataque de primavera

O Brocas Gang tem andado calmo. Apesar das solicitações dos clientes habituais e da crescente procura, o frio intenso do início do ano fez com que algumas operações fossem canceladas e o grupo aproveitou também para descansar, para deixar a poeira assentar e fazer poucas ondas. ‘Um gajo tem que ter calma, não convém dar nas vistas. É deixar pousá-los... é deixar pousá-los...’
Um dos membros do grupo, o Migas, esteve doente, quase a morrer, com uma pneumonia. Dormiu uma semana inteira em casa de um primo, sem janelas, e o frio não perdoou. O Brocas chegou mesmo a ir fazer-lhe uma visita ao hospital e prometeu, caso ele ficasse bom, uma maior participação no negócio. O Migas curou-se mas ainda não soube da promessa do Brocas.
Algumas das estratégias de acção mudaram. Tentaram uma aproximação à loja do Pirolito. Não queriam entrar no negócio do tráfico, mas dava-lhes jeito usar algum do capital do Pirolito para uns investimentos especiais, de lucro garantido. O Pirolito até alinhava, tem liquidez e precisa de fazer circular umas milenas que tem há muito tempo paradas. Infelizmente não chegaram a acordo.
Há poucos dias reuniram-se novamente à mesa do café. Discutiram a bola, os consumíveis do mestre Mourinho, ‘não sei como é que ele se safa lá, aqui um gajo arranjava-lhe sempre do melhor!’, ‘Iá, mas lá gajas não faltam!’
Depois de várias rodadas de finos o Brocas chamou a atenção para o fundo de maneio do gang. ‘Estamos a ficar lisos. Precisamos de começar a dar-lhe outra vez. Alguma ideia?’.
Levantaram-se os três quase ao mesmo tempo, pagaram os finos, compraram tabaco e subiram a rua.
O Augusto foi o primeiro a parar, encostou-se a um Rover verde, de matrícula recente. O Brocas parou a seguir para inspeccionar um Renault preto, estacionado em sentido contrário. O Migas ainda fragilizado continuou a caminhar e pegou num paralelepípedo de granito e fez sinal para uma carrinha Audi, de cilindrada considerável, parada junto ao contentor do lixo. A rua estava calma e ninguém ouviu nada.
No dia seguinte foi possível comprar uma colecção de trinta cds, com caixas originais; dois relógios; uma mala de senhora de uma marca francesa cara; dois auto-rádios já devidamente descodificados; uma cigarreira de prata, feia como as cobras, mas valiosa; alguns cartões de crédito possivelmente já desactivados mas ‘nunca se sabe’ e outras insignificâncias para usar como bónus.
Quem encontrou dinheiro guardou-o e não disse nada aos outros. ‘Receitas secundárias, insignificantes. Cada um fica com o seu.’ É uma regra do grupo.

terça-feira, março 22, 2005

Na rádio

O Bairro do Aleixo tem a partir de hoje um espaço promocional e de partilha de informação codificada no espaço radiofónico português. Semanalmente transmitimos informações, aparentemente inócuas, por ondas hertzianas. As mensagens podem ser interceptadas em 97.5 FM, Rádio Universitária do Minho (ou em www.rum.pt) todas as terças-feiras das 22:00h às 24:00h.
Análises de mercado, com as cotações actualizadas das mercadorias; bolsa de negócios; oportunidades de emprego na CMTCONBA e no exterior; anúncios de mortes por overdose, por espancamento e desaparições misteriosas; informações sobre acções policiais; partilha de dificuldades; pistas para a sobrevivência em territórios inimigos e outros assuntos prioritários para o Bairro.
Pedimos por isso que nos enviem todas as informações que julguem relevantes para uma maior visibilidade regional, nacional e internacional do Bairro do Aleixo!

quarta-feira, março 16, 2005

Irmãos

‘Foda-se, está ali a polícia!’, Artur muda de direcção e encosta-se ao muro. Espera que a polícia resolva os problemas e se vá embora. Não pode ir às compras enquanto as carrinhas estiverem estacionadas ali.
Artur é ligeiramente mais magro do que o Pato, e essa é quase a única coisa que os distingue. Chegaram ao Bairro há poucas semanas. Ninguém sabe quem são nem de onde vieram. Dizem-se irmãos e, tirando a proximidade aparente de idades, nada nos faz duvidar disso. Usam barbas grandes, casacos largos e várias t-shirts sobrepostas. O cabelo e as olheiras tapam-lhes os olhos, parecem estar sempre fechados.
São um tipo novo de pessoas no Bairro: afáveis e calmos, nunca correm, nunca ficam ansiosos com a ressaca. Não falam com muita gente, fazem os negócios com discrição e caminham sempre com o olhar fixo no chão, como se procurassem algum objecto perdido. Estão sempre a procurar alguma coisa. São, acima de tudo, alcoólicos e passam os dias com uma garrafa de vinho nas mãos, quase sempre vazia. Quando um deles tem dinheiro divide-o com o outro. Um vai à primeira torre comprar bases, o outro vai ao minipreço comprar vinho. Sentam-se no passeio, bebem, fumam. Dormem à vez num monte de cobertores, a única coisa que traziam quando chegaram ao Bairro.
Não ocuparam o lugar de ninguém, não quiseram ser ‘amigos’ de ninguém. Estão sozinhos e gostam disso. ‘Safamo-nos bem assim. Não arranjamos problemas e ninguém nos chateia. Há espaço para toda a gente aqui.’ Disse-me há dias o Pato.
Não arrumam carros e são incapazes de assaltar alguém ou de pedir moedas. Ninguém sabe onde arranjam dinheiro.

quarta-feira, março 09, 2005

Matias.

É só uma criança que anda de mão dada com a avó. Ainda não tem idade para andar sozinho.
Gostava de jogar à bola e de correr no meio da rua como as outras crianças. Gostava de fazer trincheiras com ramos de árvores no descampado ao lado do ringue. O pai não deixa.
Mudaram-se há poucos meses para o Bairro. Querem sair o mais rapidamente possível. Não querem conhecer os vizinhos, não querem que o Matias vá para a escola do Bairro.
O pai do Matias estava a chegar a casa do trabalho, quando dois homens – bombeiros, enfermeiros? – transportavam o corpo do Cides para uma ambulância que esperava do outro lado da rua, em silêncio e com o motor desligado.

sexta-feira, março 04, 2005

O trinta e cinco

O António corre e, com um salto, entra para o autocarro mesmo antes da porta fechar.
- Atão? Curtiste a cena?
- Quase que não conseguia chegar a tempo... tenho aqui duas e um, para amanhã. (põe a mão direita sobre o coração) Do melhor!
- Esta hora é porreira. Tá pouca gente...
- E tu Zé, também curtiste?
José é um tipo novo no Bairro. Veio hoje a primeira vez e teve o atendimento dos clientes conhecidos de outros bairros que vêm ao Aleixo experimentar. Ainda não consegue falar e esconde os olhos atrás dos óculos de sol, iguais aos que a brigada de trânsito usa nas patrulhas da auto-estrada.
O autocarro arranca. Nas próximas paragens vai ficar completamente cheio e mulheres gordas, com hálito a alho e a massa com carne, vão-se deslocar para a parte de trás do autocarro. As mamas grandes e descaídas vão começar a incomodar quem está sentado. O cheiro de um dia quente vai misturar-se com perfumes comprados na carrinha junto à torre 3.
José consegue finalmente articular uma frase.
- O filho da puta queria gamar-me. Devia pensar que eu não conheço as cenas.
Calou-se novamente e encostou a cabeça ao vidro.
- Tens caneco?
- Não. Perdi o meu há dias. Tenho usado o que calha.
- Foda-se. Vou ter que comprar um na baixa e não tenho ´tusto´.
- Onde é que vais comer?
- Nas carmelitas. É de graça e um gajo não se pode queixar.
- Iá. Eu vou para casa. Ainda tenho que apanhar outro.
O autocarro já está completamente cheio. Chegaram as mulheres. Chegaram as crianças mal-educadas. Chegaram homens transpirados.
José continua encostado ao vidro, a falar sozinho.
- Filhos da puta... o que vale é que a cena é boa... foi a primeira vez hoje... o que vale é que a cena é boa...
(...)
Duas mulheres carregadas de sacos de plástico, uma delas com uma criança agarrada à sua saia, empurram toda a gente para se instalarem de pé, encostadas ao vidro.
- Conheces a filha dele?
- É uma badalhoca. Anda a enganar o rapaz, que eu bem vejo. Passa à porta da loja todos os dias. Hoje com um, amanhã com outro. Há dias apareceu lá a comprar não sei o quê, depois encontrou um desses drogados e desceram a rua. Coitado do rapaz.
- Pois. Ele é trabalhador. Agora está na Maia. A empresa mudou-se.
Ocasionalmente salta um perdigoto da boca da mulher mais velha e atinge o vidro que diz ‘quebrar em caso de emergência’.
Continua a entrar gente. O autocarro vai na direcção da baixa. De quinze em quinze minutos passa um trinta e cinco perto do Bairro. Os horários são aproximados.