No Bairro do Aleixo

sexta-feira, março 04, 2005

O trinta e cinco

O António corre e, com um salto, entra para o autocarro mesmo antes da porta fechar.
- Atão? Curtiste a cena?
- Quase que não conseguia chegar a tempo... tenho aqui duas e um, para amanhã. (põe a mão direita sobre o coração) Do melhor!
- Esta hora é porreira. Tá pouca gente...
- E tu Zé, também curtiste?
José é um tipo novo no Bairro. Veio hoje a primeira vez e teve o atendimento dos clientes conhecidos de outros bairros que vêm ao Aleixo experimentar. Ainda não consegue falar e esconde os olhos atrás dos óculos de sol, iguais aos que a brigada de trânsito usa nas patrulhas da auto-estrada.
O autocarro arranca. Nas próximas paragens vai ficar completamente cheio e mulheres gordas, com hálito a alho e a massa com carne, vão-se deslocar para a parte de trás do autocarro. As mamas grandes e descaídas vão começar a incomodar quem está sentado. O cheiro de um dia quente vai misturar-se com perfumes comprados na carrinha junto à torre 3.
José consegue finalmente articular uma frase.
- O filho da puta queria gamar-me. Devia pensar que eu não conheço as cenas.
Calou-se novamente e encostou a cabeça ao vidro.
- Tens caneco?
- Não. Perdi o meu há dias. Tenho usado o que calha.
- Foda-se. Vou ter que comprar um na baixa e não tenho ´tusto´.
- Onde é que vais comer?
- Nas carmelitas. É de graça e um gajo não se pode queixar.
- Iá. Eu vou para casa. Ainda tenho que apanhar outro.
O autocarro já está completamente cheio. Chegaram as mulheres. Chegaram as crianças mal-educadas. Chegaram homens transpirados.
José continua encostado ao vidro, a falar sozinho.
- Filhos da puta... o que vale é que a cena é boa... foi a primeira vez hoje... o que vale é que a cena é boa...
(...)
Duas mulheres carregadas de sacos de plástico, uma delas com uma criança agarrada à sua saia, empurram toda a gente para se instalarem de pé, encostadas ao vidro.
- Conheces a filha dele?
- É uma badalhoca. Anda a enganar o rapaz, que eu bem vejo. Passa à porta da loja todos os dias. Hoje com um, amanhã com outro. Há dias apareceu lá a comprar não sei o quê, depois encontrou um desses drogados e desceram a rua. Coitado do rapaz.
- Pois. Ele é trabalhador. Agora está na Maia. A empresa mudou-se.
Ocasionalmente salta um perdigoto da boca da mulher mais velha e atinge o vidro que diz ‘quebrar em caso de emergência’.
Continua a entrar gente. O autocarro vai na direcção da baixa. De quinze em quinze minutos passa um trinta e cinco perto do Bairro. Os horários são aproximados.