sábado, agosto 30, 2008
Apesar de algum tímido sucesso que este blogue teve e continua a ter - como se pode ver pelos anúncios ao Viagra, substância proibida cá no Bairro - nunca mais me foi possível continuar a narrar estas histórias.
Como sabem, tudo isto é ficção. Ficção informada, é certo. Por isso mesmo não consigo continuar a contar histórias quando as informações que tenho ultrapassam largamente as ficções que imaginei.
Também é verdade que nunca vivi no Bairro do Aleixo, mas suficientemente próximo para saber da evolução do Bairro nos últimos anos e para perceber que as opções políticas tomadas relativamente aos Bairros camarários contribuiram para uma maior marginalização deste Bairro, apesar das recentes contruções, ditas de qualidade, que apareceram como cogumelos à volta das torres.
Também é verdade que conheci o presidente da junta de freguesia por causa deste blogue e da sua curiosidade para com as intenções do seu autor... Também é verdade que preferia não o ter conhecido e criar uma pequena ficção à volta da personagem: mais uma vez a realidade ultrapassou a ficção!
É ainda verdade que grande parte das personagens destas histórias existem. Não necessariamente no Bairro do Aleixo, tão pouco como aqui são descritas. No entanto a identificação óbvia de algumas não deixou de me trazer problemas - principalmente quando as fontes não tinham nada a ver com o Bairro! Mas isso são ossos do ofício.
Durante os meses em que escrevi aqui regularmentre não tinha nenhuma outra intenção que não a de me divertir com estas histórias e divertir meia dúzia de amigos que eu sabia serem leitores. Para além dos anúncios ao Viagra começaram a aparecer por aqui muitos comentários e até tive direito a uma notícia no falecido Comérico do Porto. Quase que me comovi!!!!!
Nos últimos meses o Bairro do Aleixo voltou a fazer correr muita tinta: ora pelas sucessivas e mais rentáveis rusgas, ora pela possibilidade/decisão da sua demolição, ora por um ou outro crime mais violento que lá foi cometido. E apesar de tudo isto continua-se sem uma solução para as 1300 pessoas que lá vivem e convivem com o tráfico de droga diariamente. É difícil viver assim. É difícil ser normal no Bairro do Aleixo e é difícil viver normalmente ao lado do Bairro do Aleixo.
Hoje, sábado à tarde, mais de um ano depois de ter aqui escrito pela última vez, apeteceu-me voltar. Para a semana já não viverei no Bairro do Aleixo porque não consigo aguentar mais!
É de histórias destas que se vai fazendo uma cidade, infelizmente.
sexta-feira, novembro 25, 2005
e ficamos por aqui...
Apesar das insistências e tentativas de continuação deste blogue, acabou de ser decidida em Assembleia Geral da CMTCONBA, a suspensão por tempo indeterminado deste espaço.
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Assim mesmo, sem final feliz, quase sem mortes, sem grandes planos e sem moral da história.
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Quem não conseguir viver sem isto, poderá sempre encontrar na Rádio Universitária do Minho (www.rum.pt), num formato de crónica lenta e entediante, algum consolo três ou quatro vezes por mês.
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Um dia destes publico a ficha técnica e os agradecimentos.
segunda-feira, outubro 17, 2005
O pacote.
Ela segura um cãozinho branco pela trela. Ligeiramente maior que o menino das alianças. Peludo. Com um laçarote vermelho ao pescoço. Veste calças castanhas sujas, uma camisola de lã velha e o cabelo penteado para trás, preso com dois ganchos brilhantes.
‘Ó Amadeu, nem digas isso. Por amor de Deus. Eu não te fazia uma coisa dessas. Há quantos anos é que me conheces. Procura melhor. Foda-se. Juro-te que não fui eu. Tem que estar aí. Procura melhor…. ó Amadeu, vai-te foder. Já me conheces há muito tempo. Eu não te fazia isso!’
O Amadeu enfurecido. Vagamente calvo. Calças de ganga, botas pretas e um casaco a cair pelos ombros. A mão direita a coçar com violência o braço esquerdo. Tem os olhos fixos no chão, mas com dificuldade em se concentrar num só ponto.
‘Não está aqui. Eu deixei cair aqui. O chão não é furado. Que é que queres que eu faça. Tu não viste? Vais-me dizer que desapareceu. Puta que te pariu. Estás a ver o pacote em algum lado?’
Ela a caminhar dois passos para a frente e dois para trás.
‘Foda-se Amadeu. Eu não te fazia isso. Procura melhor. O pacote tem de estar aí. Caralho, Amadeu!’
O Amadeu está desesperado. Vai-se embora a tremer. Não consegue procurar mais. ‘Vai-te foder, grande puta.’
Ela fica parada. Ar sério, mas a fingir.
‘Não te vás embora Amadeu. Procura melhor. O pacote tem que estar aqui.’
O Amadeu foi mesmo embora, foi comprar outro pacote.
O cão continuou a passear, mais agitado pelos gritos.
‘Vai te foder Amadeu. Mete menos branca.’
terça-feira, outubro 11, 2005
Um possível regresso.
Ainda não é definitivo mas é provável que, muito brevemente, os negócios continuem. Ouvimos umas notícias muito preocupantes e não podemos ficar ausentes por mais tempo.
Fala-se em actividades paralelas, clandestinas, junto a uma determinada discoteca nas imediações do Bairro.
Ao que parece uns senhores habituaram-se a estacionar uma carrinha cheia de sapatilhas, chapéus, t-shirts e outros artigos que são vendidos a baixo preço. A Comissão não gosta de negócios paralelos, muito menos da iniciativa de forasteiros.
Há no entanto um impedimento para a rápida resolução deste conflito: a área ocupada por estes senhores já não está na jurisdição da CMTCONBA, pelo que a intervenção directa se torna ilegal.
É necessário encontrar alguma forma de resolver este pequeno problema.
A Comissão decidiu convocar uma reunião especial para tratar deste assunto. O Pedro sugeriu convidar para a reunião o Ruquinha das Milongas, o Tozé Raquetas e um amigo do Brocas, frequentadores regulares da discoteca, que poderão ajudar a resolver o problema.
sexta-feira, agosto 05, 2005
Manobra de diversão.
Para grande infelicidade nossa, esta história será interrompida temporariamente.
A Sofia, o Tozé, o Pedro, a Comissão, o Joquinha, o Alberto, o Xavier, o Octávio, o Vinagre, o Casimiro, o Brocas, o Jim Louco Por Ti e os outros residentes precisam de descanso. A polícia tem parado muito no Bairro...
Até breve.
sexta-feira, julho 29, 2005
Nem sequer as tabuinhas.
Não foi vendida, não foi leiloada nem tão pouco despejada. Foi destruída. A Vivenda Silva foi completamente destruída de um dia para o outro. Ninguém viu, ninguém sabe nada. Ficaram apenas algumas manchas de humidade no chão.
O Silva e a companheira também desapareceram sem deixar rasto. Ninguém precisava dele, mas agora sentem falta dos objectos que ele vendia e as latas vazias começam a acumular nas esquinas, junto aos contentores do lixo.
‘Já estávamos habituados a tê-lo sempre aqui à mão. Não incomodava ninguém.’ Ao que parece o sentido de humor da Vivenda Silva estava a ser apreciado e até estimado pelos habitantes do Bairro. Quem no início não gostou da instalação, lamenta agora o desaparecimento.
‘Pelo menos davam uso aquele edifício tão feio. Até tinham uma porta feita com caixotes de fruta abandonados. Agora desapareceu tudo. Assim de repente.’
Não ficaram sequer as tabuinhas que faziam de mesa de cabeceira e suportavam um velho despertador e uma fotografia meia queimada.
Pode ser que tenham finalmente reunido o dinheiro necessário para casar.
domingo, julho 24, 2005
Malhão.
Para além de uma dança popular é o nome de uma misteriosa personagem do Bairro do Aleixo. Os incrédulos dizem que é um mito, que ele não existe. Há várias versões sobre ele, umas contradizem as outras e ninguém sabe onde está a verdade.
Na versão que reúne mais consensos, diz-se que ele se esconde nos vãos de escadas à espera dos clientes, que é a única pessoa que consegue vender substâncias nas ruas fora do Bairro, que se disfarça com bigodes, cabeleiras e óculos escuros. Num dia pode ser mulher, no outro pode ser homem. A lua cheia não o afecta. Nunca dorme e come muito raramente. E quem se aproxima dele só o reconhece pelas luvas verdes impecavelmente limpas, que usa sempre.
Durante o Verão ele está mais activo. A meio da noite ouvem-se vozes a chamar por ele. Pessoas desesperadas que correm para fora do Bairro com a voz rouca a gritar ‘Malhão, oh Malhão’. Ele nunca aparece quando é preciso. Não gosta de ressacados. Não responde a ninguém. Estende a mão, dá um pacote e recebe uma nota ou um monte de moedas.
Há também quem diga que veio de outro Bairro para estabelecer um negócio alternativo no Aleixo, para fazer concorrência, que o ar misterioso é uma defesa contra possíveis tentativas de o eliminar do mapa, que tem alguns aliados para o protegerem e espalharem versões contraditórias sobre ele.
No Bairro do Aleixo, acreditamos nesta versão e fazemos todos os esforços possíveis para encontrar este senhor Malhão e pô-lo no seu devido lugar!
sábado, julho 16, 2005
Brocas III.
Não tem andado bem ultimamente. Os negócios já não o entusiasmam. Está desiludido com as pessoas. Até mesmo com os inimigos. Pode ser do calor, mas anda tudo com muita pouca imaginação.
O Nelo tentou assaltar um carro de um amigo, mas só conseguiu desviar um disco da Amália e uma caixa vazia de um disco do Carlos Zel. Nem dois euros conseguiu com a venda do produto.
O Joquinha das Claquetas lembrou-se de andar ao estalo com um vizinho porque ‘ele tocou na minha namorada’. Meteu-se num sarilho. Ninguém achou piada à brincadeira e chegaram ao ponto de chamar a polícia por causa da agressão.
O Brocas tem passado os dias a beber cerveja, a apanhar sol e a fazer contas ao dinheiro que resta até à nova temporada.
‘Isto não dá. No Verão é muito calor e não temos vontade de trabalhar. No Inverno é o frio que traz menos gente ao Bairro e o movimento não justifica ter o negócio aberto.’, desabafou comigo.
Todo o Bairro está assim. Desolado, desmotivado, sem energia para contrariar a crise nacional.
Ninguém ignora que tudo isto tem obviamente a ver com a falta de mercadoria disponível para venda. A CMTCONBA ainda não conseguiu criar a linha directa América do Sul – Bairro do Aleixo e os atrasos de fornecimento agravam-se consideravelmente nesta altura do ano.
‘Eles andam aí, prendem toneladas e depois nós é ficamos fodidos. Quem tem negócios paralelos está sempre fodido. O que é que vamos fazer? Mudar de Bairro? Dito assim, até parece fácil.’
Pode ser do calor, como sempre, mas pressentem-se mudanças na atitude do Brocas e do seu gang.
sábado, julho 09, 2005
Menino das Alianças.
No Bairro do Aleixo há uma quantidade considerável de cães. Pit bulls, boxers, pastores alemães e outras raças que eu desconheço. A única semelhança que partilham é o aspecto feroz, dos animais e dos donos. Sempre prontos a atacar mulheres, crianças, reformados e toxicodependentes com ressacas dolorosas.
Durante a Primavera foram feitas várias tentativas para criar um circuito de lutas de cães. Fizeram-se cartazes a anunciar um torneio e convidaram-se estrelas de outros bairros. Infelizmente, no dia previsto para o acontecimento o Aleixo foi alvo de uma rusga da polícia e o programa foi cancelado. Um dos bairros da parte oriental da cidade ficou de organizar novo torneio, mas até hoje não tivemos novidades.
Um dos cães mais conhecidos no Aleixo é um cão anão, de raça indefinida. Mede cerca de vinte e cinco centímetros de altura e patas demasiado pequenas para subir ou descer escadas sozinho. O dono não o deixa caminhar em terrenos acidentados porque teme fracturas de ossos. Quando ladra, parece um bebé a pedir a mama e é alimentado com pequenas quantidades de leite misturado com ração devidamente triturada, para evitar lesões nos dentes pequenos e sensíveis.
Apesar de tudo isto, o Menino das Alianças, nome pelo qual é conhecido no Bairro, não tem medo em desafiar pit bulls, boxers e respectivos donos. Passa pelo meio dos animais que salivam ameaças com a cabeça erguida, ladra-lhes e até se dá ao luxo de alçar ostensivamente a pequena pata para marcar território nas ruas do Bairro. Quando sai à rua os outros animais ficam agitados, nervosos e os donos desviam o olhar ansiosos. Ao longo dos últimos dois anos, o Menino das Alianças construiu uma reputação misteriosamente feroz. E ninguém ousa provocá-lo. É temido em todo o lado.
O dono do Menino das Alianças foi aconselhado a não participar em nenhum torneio, porque temiam a desistência dos outros participantes.
Dizem que é por causa dele que a polícia tem medo de intervir no Bairro.
segunda-feira, julho 04, 2005
Vivenda Silva.
Na falta de outro nome, ficou conhecido por Silva. Passa os dias de um lado para o outro a vender objectos velhos. Com os olhos a brilhar oferece a ’um bom preço’ um saco cheio de latas de conserva, um boné, um par de sapatos, uma roda de bicicleta, às vezes um ramo de flores quase murchas, caixas de cartão, esferográficas, lenços de papel, fotografias pornográficas ou recortes de jornais com notícias de celebridades.
Apaixonou-se por uma cliente regular do Bairro. Juntaram os cobertores, alguns cartões e os poucos objectos pessoais que possuíam numa esquina de um prédio. Construíram um abrigo.
Vivem em união de facto, segundo ele. ‘Mal tenha dinheiro faço uma festa de casamento!’
Há dias encontrou um grande azulejo branco num caixote do lixo. Pediu tinta emprestada numa oficina e escreveu a azul, com uma letra de escola primária, ‘Vivenda Silva’.
Cravou a placa num vaso à entrada do frágil abrigo. Exibe-a com orgulho a quem passa.
Hoje vendeu-me uma camisola de Inverno por cinco euros.
terça-feira, junho 28, 2005
Casimiro II.
Levantou-se da cadeira. Fixou um ponto no meio do rio. Não sei, não sabe ninguém porque canto o fado neste tom magoado de dor e de pranto... O sol ainda ia alto. A meio do verso fechou os olhos e os corações começaram a bater ao ritmo lento da canção. Embalados. Os barris de cerveja e os garrafões de vinho estavam cheios. E toda a gente se calou para ouvir a melhor voz das redondezas.
...foi deus que me pôs no peito um rosário de penas que vou desfiando e choro a cantar... Não pararam de chegar pessoas. Carros estacionados em segunda fila. Autocarros cheios. A Flor do Gás a descarregar pessoas continuamente. O Largo do Ouro ficou a abarrotar. Crianças esmagadas, mulheres grávidas em trabalho de parto, ressacas suspensas por alguns minutos.
Se canto, não sei o que canto, misto de ventura saudade e ternura e talvez amor... A voz do Casimiro elevou-se do Largo do Ouro até ao céu, as torres do Aleixo tremeram, as marés atrasaram-se e esqueceu-se o S. João para na memória ficar ‘o dia em que o Casimiro cantou, finalmente, no bairro que o viu nascer.’
...sinto o mesmo que quando se tem um desgosto e o pranto do rosto nos deixa melhor...
domingo, junho 26, 2005
Junta de freguesia.
«Não tenho vida para isto. Ocupa-me muito tempo e eu tenho outras coisas mais importantes para fazer na vida. Aceitei vir para aqui, mas não sabia muito bem naquilo que me estava a meter. Já viu bem os problemas desta freguesia? Tantos bairros sociais. E que perspectivas de carreira política tenho aqui? Não se passa de presidente de uma junta para deputado ou para ministro. Não. Eu tenho outras coisas para fazer. Isto pode ser bom para algumas pessoas, mas não para mim. Conhece outros presidentes de junta? São quase todos velhos e reformados. Sem mais nada para fazer, sem perspectivas profissionais noutras áreas. O ordenado é bom para a maior parte das pessoas, mas eu tenho outras ambições. A minha área é a banca, capitais de risco, investimentos. Como imagina, estar aqui preso a ouvir os problemas destas pessoas não me deixa tempo para outras coisas. Para ganhar dinheiro, para construir a minha vida fora daqui. Vou-lhe confessar uma coisa. Eu sou amigo pessoal do presidente da câmara e só por isso é que aceitei concorrer para aqui. Eu nunca tinha estado num bairro social antes. Nunca imaginei o que seria viver num. Mudei-me ali para baixo há pouco tempo. Para perto do Aleixo. De minha casa vejo as pessoas a chegar e a sair. De manhã é assustador. Nunca imaginei. Tenho tentado fazer alguma coisa por isto. Mas é difícil. Que autonomia é que um presidente da junta tem? Nenhuma. Isto depende tudo da câmara. Do orçamento. Da vontade de muita gente. Não. Não tenho vida para isto. Foi muito bom estar aqui. Até lhe digo que aprendi muitas coisas. Mas não aguento mais!»
segunda-feira, junho 20, 2005
CampinGaz.
Nos dias quentes deste verão as actividades do Bairro fazem-se ao ar livre, quase sempre ao fim da tarde quando a temperatura baixa e o vento começa a soprar.
No pedaço de terreno em frente à Torre Um reúne-se todos os dias um grupo de clientes habituais. Instalaram um grelhador, uma mesa e alguns bancos. Um trouxe um baralho de cartas e passam algumas horas a jogar, à espera que o Pirolito abra a loja, à espera que aconteça alguma coisa melhor.
Ocasionalmente aparece alguém com umas fêveras pedidas no talho lá em cima ou com alguns peixes que sobraram do negócio de uma peixeira. Cortam alguns ramos de uma árvore e fazem um braseiro agradável.
O Vinagre conseguiu roubar um CampinGaz a alguém, ‘lá em cima, perto de Bessa Leite’. É a novidade do dia. À noite serve para dar luz e sinalizar a presença da polícia, quando é caso disso. Quando está tudo calmo, serve de isqueiro colectivo para os membros do grupo. São pelo menos oito. Todos clientes habituais e com morada quase permanente em frente à primeira torre. Sentam-se no chão e estendem as colheres para a chama. A preparação da sopa tornou-se um ritual partilhado. Aquecem as colheres, puxam o êmbolo da seringa, procuram uma veia mais visível, injectam-se. Ficam a olhar as estrelas ou a lua e a pensar na noite de S. João. Fumam um cigarro quando há.
O Filipe tentou usar a chama do CampinGaz para fumar heroína da prata. Queimou as pontas do cabelo e dos dedos e ficou sem a prata. Também não dá jeito para cachimbos.
O Vinagre encarrega-se todos os dias da manutenção do aparelho. ‘Nunca ninguém se tinha lembrado disto. Agora é indispensável. A malta está junta e conversa mais uns com os outros, ‘tás a ver?’ Quando o gás acaba ele trata da substituição.
É provavelmente o primeiro gesto de solidariedade gratuita entre os clientes do Bairro. No verão quente de dois mil e cinco.
domingo, junho 19, 2005
Breve história da Comissão.
A Comissão de Moradores, Traficantes, Consumidores e Outros Negociantes do Bairro do Aleixo foi fundada há cerca de dez anos. Lutar pela melhoria das condições de vida no Bairro e servir como plataforma de comunicação com a cidade, foram desde logo os seus principais objectivos.
Dois anos depois entendeu-se que, para consolidar a qualidade de vida da maior parte da população, seria necessário organizar as actividades comerciais dispersas por todo o Bairro. Até então não havia nem ordem nem método nas actividades: as lojas fechavam durante grande parte do dia e os clientes não sabiam onde se dirigir nem o que procurar.
A Comissão coordenou e organizou todos os intervenientes. Estabeleceram-se regras, os principais agentes em campo dialogaram, organizaram-se espaços e clarificaram-se os territórios.
O negócio cresceu, a afluência de clientes aumentou. Criaram-se equipas de segurança, planos de promoção e estratégias de importação. Cedo se percebeu as vantagens da Comissão e o seu papel fundamental. Toda a gente saiu a ganhar.
A Comissão quis ir mais longe e, há precisamente seis anos, começou a editar um ambicioso catálogo de produtos. Um extenso livro com todas as substâncias que existem no Bairro para compra imediata ou sujeitas a encomenda. Este catálogo teve cinco edições. Recentemente, quando se descobriu que algumas das substâncias mais raras começaram a ser comercializadas noutros locais, foi cancelado.
A actividade editorial da Comissão foi-se diversificando. Ao longo destes dez anos foram encomendados trabalhos a especialistas sobre o Bairro do Aleixo e sobre as questões sociais com ele relacionadas, sobre o tráfico e a actividade económica local, sobre a educação dos jovens do Aleixo, sobre o estado do consumo em Portugal e na Europa. Enfim, um rol interminável de estudos que ajudaram a construir o Bairro tal como ele é hoje. A grande maioria destes trabalhos, já aqui mencionados, está editada em revistas e publicações da especialidade. Os restantes estão apenas disponíveis na biblioteca da Comissão.
O maior investimento da Comissão na área editorial até agora foi o famoso Manual de Procedimentos do Traficante Regular. Um compêndio bastante completo que é usado na formação dos jovens dos Bairro. Reúne tudo o que é necessário saber sobre a actividade, desde a descrição das substâncias e dos seus efeitos, até às análises de mercado, passando pelos mecanismos de transporte internacional, pelos métodos de transformação química e por reflexões sobre questões sociais, políticas e filosóficas paralelas ao tráfico.
Apesar de recente, este manual é a principal fonte de informação para as duas gerações de negociantes do Bairro.
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Falar da importância da Comissão é também falar da educação no Bairro do Aleixo. Desde o jardim-de-infância até à escola primária, a educação é feita localmente. Investiu-se na melhor qualidade de ensino para aqueles que no futuro vão governar o Bairro e, quem sabe, o país.
Para os mais velhos existem actividades regulares de reciclagem onde a participação é sempre elevada e entusiástica.
Na data da sua fundação, a Comissão contou apenas com a vontade de dez pessoas, que lançaram as bases para o que viria a ser o mais importante trabalho desenvolvido para a população do Bairro.
Um ano depois e com cerca de uma centena de colaboradores, decidiu-se oficializar os estatutos da Comissão e fazer eleições para os corpos directivos. Hoje a Comissão tem várias centenas de membros. Basta ser residente no Bairro do Aleixo para se ter direito de participação na Comissão, mas o direito de voto só é atribuído ao fim de seis meses de participações regulares ou directamente, caso se trate de um negociante.
Os objectivos futuros passam, como já aqui se fez referência, pela modernização das infra-estruturas existentes, pelo aumento da produtividade, rentabilidade e qualidade dos negócios e pela saudável e eficaz mudança da geração responsável pelo governo do Bairro.
Todos os habitantes do Bairro do Aleixo estão empenhados em lutar por estes grandes objectivos traçados para o futuro e a Comissão não podia estar mais optimista.
quinta-feira, junho 16, 2005
As noites II.
Noites muito quentes e abafadas. Transpira-se muito. Há agitação no Bairro. A primeira torre não pára. Passos rápidos do primeiro ao sexto andar. Está vento, muito vento. Cruzam-se vultos, como fantasmas, nos patamares. Dois, três, quatro. Gestos nervosos, braços agitados. As janelas que cortam a torre de cima a baixo enchem-se de sombras. Terceiro, quarto, quinto andar. Silhuetas magras caminham em grupo. Ouvem-se gritos. Muito vento à noite significa mais calor para o dia seguinte. Vozes que chamam nomes. Insultos de uma para outra janela. Tiros. Sim, tiros. Três agora, mais dois depois. Do lado do rio e do mar vem uma brisa fresca. Mais gritos no meio da rua. Pessoas com medo. Uma motorizada a acelerar. Pessoas que fogem. Passos apressados no patamar do quarto andar. O café Caetano só fecha quando sai o último cliente ou quando a cerveja acaba. Portas a bater. ‘Vêm aí. Vêm Aí’. Pessoas escondidas. Um carro a travar. Mais tiros. Nunca se sabe de onde vêm, a quem se destinam. Transpira-se muito com o calor.