No Bairro do Aleixo

sexta-feira, julho 29, 2005

Nem sequer as tabuinhas.

Não foi vendida, não foi leiloada nem tão pouco despejada. Foi destruída. A Vivenda Silva foi completamente destruída de um dia para o outro. Ninguém viu, ninguém sabe nada. Ficaram apenas algumas manchas de humidade no chão.
O Silva e a companheira também desapareceram sem deixar rasto. Ninguém precisava dele, mas agora sentem falta dos objectos que ele vendia e as latas vazias começam a acumular nas esquinas, junto aos contentores do lixo.
‘Já estávamos habituados a tê-lo sempre aqui à mão. Não incomodava ninguém.’ Ao que parece o sentido de humor da Vivenda Silva estava a ser apreciado e até estimado pelos habitantes do Bairro. Quem no início não gostou da instalação, lamenta agora o desaparecimento.
‘Pelo menos davam uso aquele edifício tão feio. Até tinham uma porta feita com caixotes de fruta abandonados. Agora desapareceu tudo. Assim de repente.’
Não ficaram sequer as tabuinhas que faziam de mesa de cabeceira e suportavam um velho despertador e uma fotografia meia queimada.
Pode ser que tenham finalmente reunido o dinheiro necessário para casar.

domingo, julho 24, 2005

Malhão.

Para além de uma dança popular é o nome de uma misteriosa personagem do Bairro do Aleixo. Os incrédulos dizem que é um mito, que ele não existe. Há várias versões sobre ele, umas contradizem as outras e ninguém sabe onde está a verdade.
Na versão que reúne mais consensos, diz-se que ele se esconde nos vãos de escadas à espera dos clientes, que é a única pessoa que consegue vender substâncias nas ruas fora do Bairro, que se disfarça com bigodes, cabeleiras e óculos escuros. Num dia pode ser mulher, no outro pode ser homem. A lua cheia não o afecta. Nunca dorme e come muito raramente. E quem se aproxima dele só o reconhece pelas luvas verdes impecavelmente limpas, que usa sempre.
Durante o Verão ele está mais activo. A meio da noite ouvem-se vozes a chamar por ele. Pessoas desesperadas que correm para fora do Bairro com a voz rouca a gritar ‘Malhão, oh Malhão’. Ele nunca aparece quando é preciso. Não gosta de ressacados. Não responde a ninguém. Estende a mão, dá um pacote e recebe uma nota ou um monte de moedas.
Há também quem diga que veio de outro Bairro para estabelecer um negócio alternativo no Aleixo, para fazer concorrência, que o ar misterioso é uma defesa contra possíveis tentativas de o eliminar do mapa, que tem alguns aliados para o protegerem e espalharem versões contraditórias sobre ele.
No Bairro do Aleixo, acreditamos nesta versão e fazemos todos os esforços possíveis para encontrar este senhor Malhão e pô-lo no seu devido lugar!

sábado, julho 16, 2005

Brocas III.

Não tem andado bem ultimamente. Os negócios já não o entusiasmam. Está desiludido com as pessoas. Até mesmo com os inimigos. Pode ser do calor, mas anda tudo com muita pouca imaginação.
O Nelo tentou assaltar um carro de um amigo, mas só conseguiu desviar um disco da Amália e uma caixa vazia de um disco do Carlos Zel. Nem dois euros conseguiu com a venda do produto.
O Joquinha das Claquetas lembrou-se de andar ao estalo com um vizinho porque ‘ele tocou na minha namorada’. Meteu-se num sarilho. Ninguém achou piada à brincadeira e chegaram ao ponto de chamar a polícia por causa da agressão.
O Brocas tem passado os dias a beber cerveja, a apanhar sol e a fazer contas ao dinheiro que resta até à nova temporada.
‘Isto não dá. No Verão é muito calor e não temos vontade de trabalhar. No Inverno é o frio que traz menos gente ao Bairro e o movimento não justifica ter o negócio aberto.’, desabafou comigo.
Todo o Bairro está assim. Desolado, desmotivado, sem energia para contrariar a crise nacional.
Ninguém ignora que tudo isto tem obviamente a ver com a falta de mercadoria disponível para venda. A CMTCONBA ainda não conseguiu criar a linha directa América do Sul – Bairro do Aleixo e os atrasos de fornecimento agravam-se consideravelmente nesta altura do ano.
‘Eles andam aí, prendem toneladas e depois nós é ficamos fodidos. Quem tem negócios paralelos está sempre fodido. O que é que vamos fazer? Mudar de Bairro? Dito assim, até parece fácil.’
Pode ser do calor, como sempre, mas pressentem-se mudanças na atitude do Brocas e do seu gang.

sábado, julho 09, 2005

Menino das Alianças.

No Bairro do Aleixo há uma quantidade considerável de cães. Pit bulls, boxers, pastores alemães e outras raças que eu desconheço. A única semelhança que partilham é o aspecto feroz, dos animais e dos donos. Sempre prontos a atacar mulheres, crianças, reformados e toxicodependentes com ressacas dolorosas.
Durante a Primavera foram feitas várias tentativas para criar um circuito de lutas de cães. Fizeram-se cartazes a anunciar um torneio e convidaram-se estrelas de outros bairros. Infelizmente, no dia previsto para o acontecimento o Aleixo foi alvo de uma rusga da polícia e o programa foi cancelado. Um dos bairros da parte oriental da cidade ficou de organizar novo torneio, mas até hoje não tivemos novidades.
Um dos cães mais conhecidos no Aleixo é um cão anão, de raça indefinida. Mede cerca de vinte e cinco centímetros de altura e patas demasiado pequenas para subir ou descer escadas sozinho. O dono não o deixa caminhar em terrenos acidentados porque teme fracturas de ossos. Quando ladra, parece um bebé a pedir a mama e é alimentado com pequenas quantidades de leite misturado com ração devidamente triturada, para evitar lesões nos dentes pequenos e sensíveis. Apesar de tudo isto, o Menino das Alianças, nome pelo qual é conhecido no Bairro, não tem medo em desafiar pit bulls, boxers e respectivos donos. Passa pelo meio dos animais que salivam ameaças com a cabeça erguida, ladra-lhes e até se dá ao luxo de alçar ostensivamente a pequena pata para marcar território nas ruas do Bairro. Quando sai à rua os outros animais ficam agitados, nervosos e os donos desviam o olhar ansiosos. Ao longo dos últimos dois anos, o Menino das Alianças construiu uma reputação misteriosamente feroz. E ninguém ousa provocá-lo. É temido em todo o lado.
O dono do Menino das Alianças foi aconselhado a não participar em nenhum torneio, porque temiam a desistência dos outros participantes.
Dizem que é por causa dele que a polícia tem medo de intervir no Bairro.

segunda-feira, julho 04, 2005

Vivenda Silva.

Na falta de outro nome, ficou conhecido por Silva. Passa os dias de um lado para o outro a vender objectos velhos. Com os olhos a brilhar oferece a ’um bom preço’ um saco cheio de latas de conserva, um boné, um par de sapatos, uma roda de bicicleta, às vezes um ramo de flores quase murchas, caixas de cartão, esferográficas, lenços de papel, fotografias pornográficas ou recortes de jornais com notícias de celebridades.
Apaixonou-se por uma cliente regular do Bairro. Juntaram os cobertores, alguns cartões e os poucos objectos pessoais que possuíam numa esquina de um prédio. Construíram um abrigo.
Vivem em união de facto, segundo ele. ‘Mal tenha dinheiro faço uma festa de casamento!’
Há dias encontrou um grande azulejo branco num caixote do lixo. Pediu tinta emprestada numa oficina e escreveu a azul, com uma letra de escola primária, ‘Vivenda Silva’.
Cravou a placa num vaso à entrada do frágil abrigo. Exibe-a com orgulho a quem passa.
Hoje vendeu-me uma camisola de Inverno por cinco euros.