As festas no Bairro
A localização do Bairro, como é sabido, é bastante privilegiada. A meio caminho entre a foz e a baixa da cidade, é uma zona de fácil acesso e relativamente calma onde se pode estacionar o carro e andar a pé ou de bicicleta. Tudo isto faz com que o Aleixo seja um dos melhores locais da cidade para se fazerem festas, públicas ou privadas.
Em relação a festas públicas, não vou dizer muitas coisas, há três barcos ao fundo da Rua do Aleixo que são bastante conhecidos e que promovem festas muito concorridas.
As festas privadas podem ser abordadas de diversas formas.
Em primeiro lugar, e porque não há mais nada a dizer, temos as festas familiares. É habitual, pelo menos ao fim de semana, encontrarmos recatadas famílias em pequenos pátios, terraços, quintais e jardins, em saudável convívio. Sardinhas, quando é tempo disso, fêveras ou outras carnes durante o resto do ano e sempre que a chuva não impeça.
Em segundo lugar temos as festas do pijama, sobre as quais eu nada sei porque nunca participei.
Por último temos as festas com nomes estranhos. Quase sempre nomes aleatórios, inventados horas antes do acontecimento para não causar suspeita. Não posso, nem devo, referir nenhum nome para manter a discrição.
São festas que acontecem em algumas casas do Bairro. As pessoas que frequentam estas festas variam de acordo com o tema da festa, com a altura do ano, com a ementa e, claro, com o anfitrião. Normalmente são reservadas a 10 ou 15 pessoas, das quais pelo menos metade já se conhece.
Começam quase todas com um jantar volante, durante o qual se bebe bom vinho. Os convidados escolhem a música durante e depois do jantar. Escuta-se. O jantar tem várias entradas, pratos frios, saladas. Vinho tinto. A sobremesa, a um canto da sala, é quase sempre deixada para mais tarde ou mesmo para o dia seguinte. A partir desta altura é quase tudo pura ficção até as pessoas estarem cansadas e irem embora, ou ficarem a dormir se houver um espacinho no chão.
Na última destas festas, onde eu tive oportunidade de participar, ocorreram alguns factos estranhos.
Para além de mim, estavam presentes mais oito pessoas. Algumas, sentadas à mesa comiam salmão fumado, mexilhões, tostas com queijo. Bebia-se vinho. As outras pessoas conversavam dispersas na sala ou na cozinha. Bebia-se um vinho tinto muito bom. Não me recordo qual. Havia também cerveja na mesa e circulavam algumas drogas num espelho, numa pequena caixa verde, num cigarro. A sobremesa, como sempre, foi ignorada. Era gelado de chocolate belga ou salada de frutas. A música aumentou de volume, afastou-se a mesa e algumas pessoas começaram a dançar. Continuaram a circular diferentes drogas. Acabou e vinho e abriram-se garrafas de vodka whisky e martini. Enquanto algumas pessoas dançavam as outras conversavam conforme podiam. Estava muito calor.
A sala e a cozinha desta casa, as áreas mais frequentadas durante a festa, estão voltadas para um quintal de uma igreja. Durante toda essa noite duas pessoas trabalharam no quintal. A plantar batata ou nabos. Algumas vezes durante a noite fomos à janela observar. Oferecemos uma garrafa de vinho aos trabalhadores nocturnos. Sorriram com resignação. Algumas horas depois estavam já cinco pessoas no quintal com enxadas a cavar a terra. Trabalhavam em silêncio, metodicamente, como se aquilo fosse o que sempre tinham feito: trabalhar na terra de madrugada.
Por volta das quatro da manhã, e aqui começam os factos verdadeiramente estranhos presenciados por toda a gente, entra no quintal e mistura-se com os trabalhadores um senhor de batina muito escura e brilhante. O padre da igreja. Alguém fez uma sonora piada com a batina e com o padre. Ele vinha sem enchada para cavar a terra. Falou aos três homens e às duas mulheres que lá estavam. Escutaram e pousaram as enchadas. Pararam de trabalhar. Olharam com alegria para o padre durante alguns segundos e depois, como se tivessem em grande euforia, começaram a correr uns atrás dos outros. Correram por todo o quintal. Tentavam ter alguma organização na corrida, como se de uma caçada se tratasse. O padre sorria e de vez em quando fazia de um comentário um grito. Um dos homens mais velhos foi o primeiro a parar. Estava visivelmente cansado e tirou o casaco. Ficou só com uma camisola interior de alças, daquelas com buraquinhos. Aos poucos foram todos parando para respirar melhor. Bebiam de umas garrafas de vidro escuro e preparavam-se para se irem embora. Enquanto caminhavam em direcção à casa, com a respiração ofegante iam deixando para trás os casacos, os chapéus, uma bota, as calças. Quando desapareceram dentro de casa estavam todos quase nus e transpirados.
O padre ficou no meio do quintal. Admirava tudo com um ar de clérigo satisfeito depois da ceia. Regozijava-se pela alegria do seu rebanho.
Parámos a nossa tímida festa para observar aquele acontecimento.
Dentro da casa a luzes acenderam e começamos a ouvir canções. Canções de cada vez mais sonoras, acompanhadas de gritos e danças.
Batemos palmas e gritámos tão alto quanto possível e alguém tentou perguntar se nos podíamos juntar à festa. Ninguém nos ouviu. Continuaram a cantar e a dançar.
Sempre que falamos disto ficámos muito confusos. Todos testemunhamos este estranho e divertido episódio, no entanto ninguém estava suficientemente lúcido para garantir e descrever pormenores sobre o assunto. O que acabei de contar não é mais do que uma tentativa de reconstituição do que todos nos lembramos de ter visto e das peças que foi possível juntar depois do acontecimento. Um caso para um bom detective.
Obviamente que este acontecimento não é nada de extraordinário e talvez não tenha sequer relevância para ser relatado com esta pompa. É apenas um pequeno caso de paróquia. Por uma questão de autodisciplina, os posts não se devem prolongar demasiado. Por isso não vou conseguir explorar, por agora, outras festas do Bairro à porta fechada.
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