Uma rede internacional
Alguém teve a ideia de incluir o Bairro do Aleixo nos roteiros internacionais de promoção do consumo de estupefacientes. A sugestão foi acolhida com grande entusiasmo mas depressa dividiu a população em várias facções: aqueles que apoiam incondicionalmente a ideia; aqueles que apoiam mas só se isso não implicar iniciativas pró-legalização, ‘precisamos do lucro, precisamos do lucro!’; aqueles que apoiam mas só se for no sentido da luta pela legalização, ‘os filhos da puta só pensam em dinheiro’; aqueles que recusam completamente qualquer envolvimento do Bairro nesses assuntos e, por fim, aqueles que não sabem porque não têm conhecimentos para decidir o que quer que seja, ‘eu não sei que vantagens isso traz. Eles vão arranjar o elevador?’
Foi necessário reunir mais uma vez a Comissão de Moradores, Traficantes, Consumidores e Outros Negociantes do Bairro do Aleixo (CMTCONBA) para discutir a proposta e decidir sobre este assunto. Como ninguém sabia muito bem como concretizar a ideia, nem como abordar uma associação internacional, nem sequer se existe de facto alguma associação ou rede que promova o consumo de estupefacientes, encarregaram um jovem elemento da Comissão com conhecimentos de inglês e computador em casa, de fazer uma pesquisa e recolher informações para serem apresentadas e discutidas na próxima reunião.
E aqui chegamos a um ponto interessante deste acontecimento.
O entusiasmo do jovem escolhido, Pedro, foi de tal ordem que, passados dois dias, regressou à Comissão com centenas de páginas de informação impressa sobre organizações que operam através do espaço virtual. Ou seja, organizações sem sede física e sem despesas fixas, cuja manutenção é garantida por indivíduos que trabalham sem fins lucrativos e se interessam por estas matérias.
Os elementos da Comissão ficaram confusos com a quantidade de material coligido pelo Pedro e mostraram-se insatisfeitos pelos resultados não serem nada concretos sobre a existência de organizações internacionais que reúnam parceiros idênticos ao Aleixo, nem sobre a possibilidade do Aleixo se associar a eles. Ou seja, a informação reunida dizia apenas respeito a investigações mais ou menos científicas, mais ou menos honestas, sobre psico-fármacos e outras substâncias químicas associadas. Vou tentar resumir os dados apresentados pelo Pedro.
A primeira organização relevante encontrada foi uma tal de BLTC, que, explicou ele, são as iniciais para a expressão inglesa Better Living Through Chemistry. Esta organização desenvolve um programa de investigação em diversos campos da ciência. Alguns deles, segundo o Pedro, não interessam absolutamente nada para o Aleixo porque têm a ver com ‘manias de mudar o universo e eliminar o sofrimento humano através de redefinição da espécie humana e da criação de universos alternativos desenvolvidos pela ciência e pela tecnologia. Estão mais ou menos a ver?’ Outros campos de acção, e onde são disponibilizadas inúmeras informações úteis para o Bairro, estão directamente relacionados com investigações sobre estupefacientes naturais e químicos que, segundo Pedro, ‘são outro caminho para eliminar o sofrimento humano. Eles explicam tudo.’
Por exemplo, em http://cannabis.net podemos encontrar extensa informação sobre as vantagens e desvantagens do uso de cannabis, de marijuana e derivados, para fins medicinais e de lazer. Em http://mescaline.com encontramos dados sobre o uso e produção de mescalina. Em http://cocaine.org e em http://www.heroin.org descreve-se tudo o que é preciso saber sobre opiáceos e sobre as drogas produzidas pela folha de coca sul-americana, incluindo dados importantes sobre a evolução das redes de tráfico. Entre outros sítios referenciados e que disponibilizam informação sobre praticamente todas as drogas – legais e ilegais, na moda e fora de moda, inventadas e por inventar – destaco apenas mais um, que foi particularmente enfatizado pelo Pedro. O sítio http://www.mdma.net leva-nos ao universo das drogas sintéticas e psicadélicas, com informações detalhadas sobre os seus inventores e sobre as sucessivas experiências que suscitaram ao longo dos anos.
Qualquer destes sítios contém, para além de dados relevantes sobre os processos de produção e de tráfico, informações históricas e recomendações para usos medicinais e de lazer, diversos artigos científicos sobre todos estes assuntos. Um manancial de informação muito útil para curiosos, consumidores e negociantes.
Foi neste ponto que a plateia se transformou quase num campo de batalha: estava o Pedro a citar, como exemplo, um artigo sobre o consumo de haxixe, quando se ouviu uma cadeira a ser arrastada e um morador de voz exaltada: ‘que incentivem o consumo acho bem, agora que me venham com tretas sobre vender droga nas farmácias e sobre consumos moderados é que não me parece nada bem. Cá para mim esses gajos não são do negócio.’ A discussão começou.
Com é fácil de perceber, o morador que iniciou a discussão tem uma forte participação nos mercados da cidade e opõe-se violentamente a qualquer informação que ponha em causa a sua legitimidade para fornecer o melhor produto.
Entretanto levantaram-se outros moradores que se manifestaram contra o facto de se falar demasiado abertamente e com termos esquisitos sobre estupefacientes. ‘Para que é que nos interessa isso? O Bairro sempre cresceu e nunca ninguém falou muito do assunto. O importante é o resultado. As explicações e os desenhos não interessam.’ ‘Se queremos um Bairro moderno e competitivo, temos que estar informados e procurar os melhores produtores. Temos que investir nos meios tecnológicos adequados e apostar na qualidade. Toda a gente sabe isso.’ Gritou alguém numa tentativa de defender o Pedro. Houve quem lhe chamasse ‘novato com a mania das grandezas’.
Tentei ficar mais tempo para recolher mais reacções mas não consegui. Toda a Comissão estava já levantada, as portas da sala abertas com muitas cabeças a espreitar. Saí discretamente depois de combinar um encontro com o Pedro para trocarmos mais informações. Ele ainda só tinha exposto uma pequena parte das suas pesquisas.
A ideia de adesão a uma associação internacional ficou por aqui, não que tenha sido completamente esquecida, mas ninguém voltou a falar dela e esperam-se melhores tempos para retomar a iniciativa. O Pedro continua com as investigações.
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